teatro

celebrar, ainda que se faça tarde de tristezas

crítica de “Mississipi”, d’Os Satyros.

Fundado em 1989 por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, Os Satyros celebram trinta anos de uma premiada, reconhecida e importante trajetória. Durante a primeira década de companhia, esta dividiu-se entre São Paulo, Lisboa, Berlim e Curitiba, acumulando êxitos desde suas primeiras montagens. Ainda assim, atualmente é difícil dissociar Os Satyros da Praça Roosevelt.

Instalados no local desde o ano 2000, Cabral, Vázquez e tantos outros não apenas testemunharam as mudanças no entorno, mas foram efetivamente agentes de transformação da praça. Hoje revitalizada e reduto da boemia e da classe artística paulistana, seus tantos bares e teatros encaram a gentrificação da região iniciada há alguns anos.

Pouco após instalarem-se onde então coabitavam traficantes, pessoas em situações de rua, usuários de drogas e prostitutas, debruçaram-se em obras que dialogavam com sua própria situação e entorno. Em 2004, iniciam uma trilogia dedicada à Roosevelt com “Transex”. A obra, de abordagem documental, tinha como foco o cotidiano de transexuais que por lá viviam — como Phedra de Córdoba, que viria a se tornar diva da companhia até seu falecimento, em 2016.

No ano seguinte, estreiam “A Vida na Praça Roosevelt”. O texto escrito pela dramaturga alemã Dea Loher constrói “uma narrativa focada sobre a população que cruza ou habita o lugar”, afirma Mariângela Alves de Lima em crítica no Caderno 2. E segue: “Recorte dramático do presente, o texto ignora as visões idílicas de ágoras anteriores e tampouco se aventura pelo território das utopias. (…) Trata-se, enfim, da praça como ela é hoje”.

Então, em 2007, a trilogia se encerra com o projeto “E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias”. Foram sete dramaturgos e seis diretores (Mário Bortolotto foi o único a dirigir o próprio texto) convidados a encenar possibilidades da praça. A pluralidade de tempos, linguagens e temáticas presentes em tal proposta parece reverberar nos espetáculos dos Satyros — mesmo quando assinados apenas por Cabral e Vázquez.

Trata-se de uma companhia que busca compreender a diversidade em toda a sua complexidade — e nesse sentido, alinha seu discurso cênico ao seu fazer cotidiano. Na composição dos Satyros ao longo dos anos, é comum observar a presença de pessoas oriundas “dos mais variados contextos, como jovens recém-saídos do sistema prisional ou transexuais que vinham de situação de vulnerabilidade social, comprovando como é caro o tópico da acessibilidade para o grupo”, afirma Marcio Aquiles em texto no programa de “Mississipi”.

Nicole Puzzi em “Mississipi” / foto: Lenise Pinheiro

Ao celebrar trinta anos voltando a olhar poeticamente para seu entorno, Os Satyros concebem uma nova “declaração de amor à Praça Roosevelt”, como dizem Cabral e Vázquez no mesmo programa. “Mississipi” leva o nome da personagem de Cabral e, de certo modo, acompanha sua trajetória. No entanto, não se trata de um protagonista, tampouco de um fio condutor único.

Ao observar a trilogia apresentada há mais de dez anos, há um dado interessante. Em “A Vida na Praça Roosevelt”, a dramaturgia não é da companhia. No projeto “E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias”, convidados escrevem e dirigem. E ainda que “Transex” conte com a assinatura de Cabral e Vázquez na dramaturgia e do segundo na direção, há um recorte temático bem estabelecido no que tange a questão de gênero.

Em “Mississipi”, com o texto assinado pelos dois fundadores dos Satyros, contando com Vázquez na direção e Cabral no elenco — uma configuração, por assim dizer, tradicional nas obras da companhia — o que se estrutura é uma encenação mais endógena, representativa do que é o grupo hoje em dia, ainda que a grande ambição seja o olhar para fora.

A relação entre Satyros e Roosevelt é, de fato, indissociável. A transformação da praça efetivada pela presença do grupo, da boca do lixo à reforma e zeladoria efetuada pelos órgãos públicos — além de uma consequente gentrificação — é denso combustível para a encenação.

Neste sentido, há a curiosa escolha de situar o espetáculo em três períodos e, ao mesmo tempo, não localizar temporalmente todas as cenas que acontecem. Uma sugestão, talvez, do que permanece independente das mudanças; além do que acontece apesar delas.

“Mississipi” / foto: Virginia Benevenuto/Festival de Curitiba

A construção alegórica é também elemento presente em diversas obras da companhia. Em “Mississipi”, porém, tal escolha parece gerar certo ruído na fricção da narrativa ficcional com os dados documentais. Como se, considerando a proximidade do material concreto sendo trabalhado, a alegoria não sustentasse o peso do real.

Pode-se, ainda que talvez não seja o mais adequado, dividir as personagens em dois grandes grupos: as pessoas em situação de rua e as pessoas que não estão em situação de rua. Considerando tais categorias, o que se verifica são personagens com direito ao espaço privado — independente de suas classes sociais — e aqueles relegados ao espaço público, extremamente inóspito. Naqueles que dormem sob um teto há a maior possibilidade para a plateia reconhecer-se, sem dúvidas. E assim, as alegorias — ou, em alguns casos, até mesmo arquétipos — se localizam de maneira mais potente.

Na construção das pessoas em situação de rua, ainda que se considere o sensível cuidado nas — boas — atuações, além da própria experiência do grupo no convívio com tais pessoas, parece inevitável incorrer em certos tipos de clichês. E a encenação parece compreender isso em certos momentos: na rubrica que antecede um longo e acusatório discurso da personagem interpretada — com consistência — por Eduardo Chagas, a afirmação de que depois do consciente desabafo a cena seguirá como se nada tivesse acontecido pode estar se referindo às ações no palco mas também sugerindo certa ineficácia no ato em si.

Imara, em convincente interpretação de Julia Bobrow, opera um recurso dramatúrgico conhecido: trazendo consigo um discurso cifrado, pode ser vista como louca pelos que a escutam, mas sua fala está repleta de lucidez e reflexões do contemporâneo. Há ímpetos de profundidade nas ações das personagens em situação de rua; por vezes, no grande panorama apresentado, acabam pouco verticalizadas.

O que parece evidenciado na totalidade das situações são as dores e amarguras da vida, sem distinções de classe. Isso não significa, porém, que não há um olhar crítico sobre a lida com a miséria. Ódio, intolerância e diversas violências se apresentam em “Mississipi”. No entanto, as escolhas dramatúrgicas e de encenação parecem optar para um olhar sobre aquelas pessoas — e não para as estruturas que enraízam e naturalizam tais situações.

Fabio Penna e Robson Catalunha em “Mississipi” / foto: Virginia Benevenuto/Festival de Curitiba

No formato, uma espécie de “teatro-karaokê” se instaura — as músicas não operam meramente como transição de cena, mas como comentário dramatúrgico e instauração de relação direta com o público. É impossível não pensar no dado kitsch que também salta aos olhos daqueles que frequentam a praça Roosevelt.

Dessa forma, considerando não apenas as escolhas musicais mas também frequentes referenciações à locais do entorno, o que se estabelece em “Mississipi” é efetivamente uma celebração da vida que pulsa, visível e invisível, nos Satyros e em seu entorno.

Tal celebração se verifica na relação construída com a plateia em diversos momentos, mas fundamentalmente quando “Manhãs de Setembro” é cantada. Por mais que a canção de Vanusa possa, em uma chave interessantemente patética, dialogar com a cena anterior, causa estranhamento o ânimo do elenco e seu transbordamento para a plateia; nem todos sabem da relação daquela música com o festival Satyrianas— o que não impede que muitos embarquem na cantoria.

Além das por vezes inesperadas escolhas musicais no karaokê, em certos momentos a trilha e dramaturgia sonora de Marcello Amalfi não escapa do óbvio na condução das atmosferas de cada cena. No design de aparência assinado por Adriana Vaz e Rogério Romualdo, o contraste entre as duas categorias de personagens se evidencia. Os antagonistas Max (Henrique Mello) e Alone (Gustavo Ferreira) se apresentam monocromáticos e assépticos, contrastando com os demais personagens.

E ainda que os dois se configurem como os principais vilões da narrativa — na figura do síndico reacionário, talvez esteja a crítica mais direta às questões vividas pelos artistas da praça — não há um enfrentamento direto. A personagem-título, em comovente interpretação de Cabral, traz na sua ingênua inocência o que emerge como central em “Mississipi”: a tristeza frente a miséria, a impossibilidade de salvar a todos e a necessidade de seguir vivendo.

Ivam Cabral em “Mississipi” / foto: Virginia Benevenuto/Festival de Curitiba