teatro

normatividade, essa frágil representação

crítica de Mesa pra cinco, com dramaturgia e direção de Gabriela Lemos.

Cinco homens, amigos de infância, se encontram em um bar. Mesa pra cinco. A motivação central seria consolar um amigo cujo relacionamento terminou após ele ser traído de forma terrível. Mas, no lugar de apoios sinceros e demonstrações de carinho, o que se sucede é uma sequência de provocações, comportamentos passivo-agressivos e o destilar de uma misoginia recreativa. Ao machismo deles somam-se também comentários racistas, classistas e a revelação da hipocrisia dos cidadãos de bem.

A dramaturgia de Gabriela Lemos apresenta figuras triste e facilmente reconhecíveis em quaisquer ambientes predominantemente cisheteronormativos e masculinos. Em 2018, ela dirigiu a primeira encenação de sua Mesa pra cinco, que ficou em temporada no bar da Cia. da Revista. No elenco, cinco homens cisgêneros interpretavam as personagens. Ainda que na proposta fique evidente a intenção da autora e diretora de apresentar tais discursos de forma crítica, a estrutura dramática da situação e sua interpretação realista poderia incorrer em uma reprodução da violência nesta mesma busca por combatê-la.



Agora, em 2022, Lemos retoma seu texto e propõe uma nova montagem de Mesa pra cinco. Ao entrar no Espaço Parlapatões, o público é recebido por dois garçons (Maurício Ribeiro e Thomas Marcondes) de calça jeans, pano no ombro e sem camiseta. E sentam-se na mesa, então, cinco mulheres: as atrizes Cecília Barros, Giuliana Melito, Julia Fovitzky, Natália Coutinho e Tamylka Viana. Mas não se trata de uma nova peça; elas interpretam os mesmos homens da encenação original.

Trata-se de uma operação simultaneamente simples e complexa. Sob a direção de Lemos, o elenco compõe organicamente essas personagens; não há uma construção que busque os maneirismos do que seria interpretar um homem. A lida com o gênero está na utilização de nomes e pronomes masculinos, e é essa escolha que sustenta o desarranjo entre o que se vê e o que se escuta.

É como se a representação, então, suplantasse quem a representa. Este procedimento alarga a forma dramática da situação, inserindo nela uma criticidade épica que permite trazer à tona diversas camadas de violências causadas por uma normatividade compulsória sem necessariamente reproduzi-las de forma direta. Mesa pra cinco torna-se inteira estranha naquelas cinco mulheres que corporificam o discurso misógino escancarado pela dramaturgia.

A negação consciente da performatividade da obra torna-se, então, negação da norma. Na convenção estabelecida pela encenação de Mesa pra cinco, as normatividades formalizam-se enquanto pura representação. Evidentemente, as violências presentes na obra são reais; mas ao olhar para essas construções (e hierarquias) social e historicamente sustentadas como ficções, talvez se possa vislumbrar um caminho de enfrentamento e superação.

Entre a intencionalidade do discurso dramatúrgico e o estranhamento causado pelas escolhas da encenação desenha-se um alinhamento crítico, que problematiza a fruição por diferentes públicos. Como nem sempre o óbvio é óbvio para todas as pessoas, talvez siga sendo possível identificar-se com o que dizem aquelas figuras. Mas já não se pode fazê-lo impunemente. Seja pelo deslocamento do emissor do discurso – o fato de serem mulheres dizendo tais absurdos pode escandalizar homens que acreditam que reside neles o direito à grosseria (para não dizer violência) – ou pelo próprio desenrolar da narrativa, que desvela as idiossincrasias e hipocrisias de basicamente todos eles.

Nas interpretações, as atrizes aproveitam-se das nuances de cada personagem: enquanto Barros mergulha – de forma deliciosa e precisa – na escrotidão de seu homem de bem, talvez o pior daqueles espécimes à mesa, Fovitzky serve de cúmplice de todas as pessoas do público (ou assim espera-se) em suas reações e expressões faciais. Viana é quem constantemente quebra as quartas paredes em seus comentários, incluindo e implicando a plateia nos acontecimentos. Já Coutinho age como pivô da situação dramática e Melito é simultaneamente protagonista e antagonista dentro do tema central.

Além do óbvio atravessamento pelas questões de gênero, Mesa pra cinco também aborda classe e raça. A notícia do novo emprego da personagem de Coutinho é celebrada no início, mas quando revela-se o real posto de trabalho, ele torna-se alvo de chacota: ser um office boy, no meio daqueles tantos homens de sucesso, é razão suficiente para ser humilhado nas brincadeiras dos amigos. 

Quanto à raça, mais uma vez a performatividade é negada em detrimento da construção da representação enquanto crítica: em certo momento do diálogo, fica nítido que Viana e Fovitzky, mulheres negras, interpretam homens brancos, já que é a personagem de Coutinho, mulher branca, que precisa chamar a atenção para os comentários racistas feitos dentro do diálogo. Assim, a convenção de Mesa pra cinco se constitui inteira enquanto confronto da(s) norma(s).

Não se trata de mera oposição; a obra não opera uma inversão de chave para mostrar como seria o sexismo às avessas. Sua eficácia reside precisamente na tensão entre performatividade e ficção: na teatralidade que convenciona que corpos femininos representem homens, escancara-se o absurdo normalizado pelo sistema cisheterossexista e patriarcal. Mesa pra cinco é deboche-manifesto; posta em cena do ridículo deste poder (auto)instituído do masculino.

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ficha técnica
Mesa pra cinco

Direção, dramaturgia e produção – Gabriela Lemos. 
Elenco – Cecília Barros, Giuliana Melito, Julia Fovitzky, Natália Coutinho, Tamylka Viana, Maurício Ribeiro e Thomas Marcondes. 
Assessoria de Imprensa - Renato Fernandes. 
Foto - Luiza Tojer

serviço
Espaço Parlapatões
Praça Franklin Roosevelt, 158 - Consolação, São Paulo - SP, 01303-020
Temporada: Até 2 de agosto, sempre terça-feira, às 21h
Preço: Contribuição Voluntária