do que se foi, do que ficou
crítica a partir de Meninos, do Espaço Garganta. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“Os meninos pequenos são os únicos homens de nossa cultura que têm permissão para entrar em contato total e pleno com seus sentimentos, momentos em que podem expressar sem vergonha o desejo de amar e ser amados.” (bell hooks em Sendo um menino)
“Preciso de carinho / pois eu quero ser compreendido” (Jorge Ben – Porque é Proibido Pisar na Grama)
Os irmãos João e Rafa passeiam pela infância no Google Maps. Reinaldo e Luquinha, tio e sobrinho, dançam samba-rock. Edu e João vivem um dia dos pais diferente. Em comum às três narrativas que estruturam Meninos (2023), ausência, saudade, solidão. Enquanto temas sociopolíticos pungentes continuamente ganham a cena teatral contemporânea paulistana pelo viés performativo, o Espaço Garganta, capitaneado por Lucas Mayor e Marcos Gomes, aposta na força da dramaturgia dialógica e na potência do drama; texto e ator, personagem e ação: assim são as encenações.
É curioso observar que, em que pese as inúmeras obras versando sobre a luta feminista, autobiografias e autoficções de mulheres vítimas das tantas violências de gênero, pouco se vê um olhar efetivamente voltado às masculinidades no palco. Obras que trazem essa discussão para o centro parecem tender ao distanciamento – temporal, falando sobre comportamentos passados, ou ficcional, construindo figuras distantes de seus intérpretes. Quase como se o ato de debruçar-se sobre a formação da subjetividade masculina fosse uma contradição ou uma impossibilidade performativa.
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Em Sendo um menino, bell hooks reflete em torno do lugar da infância dos homens e as transformações da infância à adolescência e à vida adulta – tristeza, depressão, raiva, violência –, identificadas pela autora como consequências do patriarcado. “Não podemos ensinar aos meninos que ‘homens de verdade’ não sentem ou não expressam sentimentos; e então, esperar que os meninos se sintam à vontade para entrar em contato com seus sentimentos“. O texto serviu de inspiração para Meninos; na obra, talvez as dramaturgias de Rafael Cristiano, Mayor e Gomes (os dois últimos também diretores da encenação) sejam uma tentativa de “imaginar novas imagens e textos para meninos” – uma dificuldade apontada por hooks em seu texto.
No caso, hooks falava sobre histórias para crianças, livros infantis. Meninos é peça adulta que resgata a “permissão para entrar em contato total e pleno com seus sentimentos, momentos em que podem expressar sem vergonha o desejo de amar e ser amados“. As situações, ágeis no sentido de sintéticas e exemplares, provocam no público um movimento de resgate e percepção; especialmente naqueles que já foram meninos, que “não são vistos como sendo amáveis na cultura patriarcal“. Não à toa, vínculos (ou a ausência de vínculos) paternos são o centro de duas das três cenas.
Google Maps é da saudade do afeto da mãe e sobre como a memória conecta homens mesmo no tempo presente. Numa rubrica do texto de Mayor, os irmãos “Riem ainda mais. Se olham. Ternura antiga. Ainda imersos no riso“. Como se o passado fosse a base estável para uma relação e o agora é incerteza e tentativa – “Eu continuo procurando o que fazer. Enquanto não acho, tenho tentado viver“, como narra João sobre a conversa que teve em seu encontro. Algo de corriqueiro e algo de metafísico convivem nesses laços reatando-se. Ao final, Djavan canta que “o que sobrou de nós dois / não dá nem pra repartir” e são muitos nós dois possíveis de se triangular.
Procuro falar com alguém que / precise de alguém pra falar também, de Cristiano, traz Jorge Ben no título e no vínculo: tio e sobrinho percebem que o avô está escolhendo as músicas quando o samba-rock anima o churrasco, que acontece em outro ambiente. Homens, a mais ou menos tempo meninos, de algum modo sozinhos. Luquinha se enxergou em Mano Brown pedindo para que as pessoas não desistam dele: “não me abandonem. Porque às vezes eu fico sozinho, no meu mundo pequenininho, pá, cheio de problemas individuais meus. Não me abandonem. Me chama, me liga“. Um pai que sumiu e o que isso faz do filho que ficou e o que isso faz do irmão que ficou e a avó que ficou e. hooks escreve que “Ser capaz de lamentar a perda de conexão emocional com o pai seria uma maneira saudável de lidar com a decepção. Mas os meninos não têm espaço para lamentar” e talvez por isso Luquinha e Reinaldo dancem – “Preciso de carinho / pois eu quero ser compreendido“.
Dia dos pais, de Gomes, é a única cena aberta em Meninos, onde personagens também narram diretamente ao público. A situação é construída em torno de um absurdo que revela o real. Um encontro entre desconhecidos dispara um gesto de construir vínculos. Não se trata de um exercício de memória, mas de reconstrução, invenção. “apesar da situação embaraçosa, seu colo era muito confortável, não me sentia incomodado, pelo contrário, finalmente me sentia em casa“, diz joão ao público. Neste jogo entre edu e joão e a plateia, algo singularmente afetivo se produz na cena. O “espaço de saudade vazia” apontado por hooks é preenchido pelo desejo de tornar real a “conexão emocional fantasiosa entre pai e filho” que “nunca é percebida“, mesmo que a partir da elaboração de outra fantasia.
O masculino, o drama, a força da palavra e da ação acordados no aqui e agora, da construção ficcional de espaços e relações. Há algo de realidade nas narrativas, mas o gesto artístico investe na produção de identificação a partir da escrita dramática. A proximidade é espacial e simbólica enquanto o Espaço Garganta é feito de boteco, fundo de quintal, casas e ruas, territórios de resgate de afetos recalcados, sublimados; de faltas vividas e internalizadas. Masculinidade é ausência em texto e subtexto e Meninos é matéria feita do que se foi e do que ficou.
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ficha técnica
Meninos
Texto: Lucas Mayor, Marcos Gomes e Rafael Cristiano
Direção: Lucas Mayor, Marcos Gomes
Elenco: Eduardo Guimarães, João Bourbonnais, João Filho, Lucas Laureno, Lucas Mayor, Marcos Gomes, Rafael Cristiano e Ricardo Teodoro
Produção: Grupo II