teatro, vozes

os ruídos ensurdecedores da água

crítica de Solo de Marajó, do Usina Contemporânea de Teatro (PA), por Maria Carolina Ito (produtora cultural, técnica de som e sonoplasta. Quando a realidade não basta, escreve.)

São setenta e seis anos que separam o texto da encenação. Ainda que seja tempo suficiente para repetidas mudanças, os quatro olhos – do autor e do ator – parecem vislumbrar as mesmas realidades.

A Ilha do Marajó, espaço-universo dessa história, é um espetáculo: não apenas pela exuberância de sua floresta, pela beleza de seus rios e pela imensidão de sua fauna. A região é alvo de uma espetacularização constante: o maior arquipélago do planeta faz parte da região Amazônica, solo disputado mundialmente, especialmente para o desmatamento, sendo historicamente utilizado como moeda de troca e ferramenta política. 

Porém, um espetáculo dessa dimensão traz consigo um grande problema: de tantos holofotes, cega-se o público em relação aos bastidores. Uma eterna nuvem de fumaça que acoberta a realidade: a ilha, assim como toda a região, sofrem de um profundo abandono governamental, com baixíssimo acesso a serviços públicos, como hospitais e saneamento básico. É neste cenário desamparado que assenta-se um dos maiores esquemas de exploração sexual infantil do Brasil. 

Violências, a ausência de qualquer lei e a desesperança são presenças constantes para os moradores da Ilha. Lá, a vida se apresenta como força oposta à poesia. 



Claudio Barros se apossa de um palco vazio, vestido com roupas básicas e cruas. Uma iluminação simples dá destaque aos personagens que habitam o romance de Dalcídio Jurandir. Pessoas comuns, cuja existência é tão complexa que, sem olhos e ouvidos muito atentos, não se faz possível captar todas as suas camadas. 

Se apropriando de trejeitos, feições e vozes caracterizantes, Claudio dá vida a homens, mulheres, crianças, vítimas e agressores que possuem uma coisa em comum: terem fatalmente nascido na Ilha de Marajó – não é possível saber, ao certo, se em 1947 ou 2023.

O início da peça nos indica um caminho repleto de poesia e sutilezas que dura pouco: é impossível se abrigar por muito tempo na ficção quando a realidade agoniza.

Ainda que cambaleantes – como todas as realidades baseadas no ódio e no medo – a Ilha do Marajó permanece caminhando em cima dos corpos que mutila – em sua maioria mulheres, jovens e crianças. Mas toda realidade que impõe abandono e por consequência cerceamento – pois não me parece possível ser livre quando só -, atinge a todes que dela fazem parte. Ainda que alguns pareçam ter mais poder e sobriedade, são também acometidos por esse contexto ausente de amor, afeto e segurança. E ainda que batam, estuprem e matem, estão tão vazios e sofrem tanto quanto quem apanha. Se não na carne, na alma.

ficha técnica
Solo de Marajó
Obra original: Romance Marajó, de Dalcídio Jurandir (1947)
Dramaturgia, iluminação, encenação e direção: Alberto Silva Neto
Dramaturgia, figurino e atuação: Claudio Barros
Fotos de divulgação: JM Conduru Neto
Coordenação de Produção: Vanda Dantas