ousar sonhar-se
crítica de Magnólia, com concepção, idealização, direção geral e atuação de Marina Esteves. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“E por essas coisas fazem-se os milagres de uma coisa só” (Jorge Ben Jor – Hermes Trismegisto E Sua Celeste Tábua De Esmeralda)
Um ser celeste, mulher preta, existe em cena como o sonho de uma mulher preta. Dos céus nasce na terra. Da Etiópia, chega ao Brasil. Nasce como flor. Como mulher preta. Vê o Flamengo jogar. Se apaixona, é apaixonada. Nasce como plâncton. Aprende quem é enquanto vive, coloca-se diante do mistério. Entende-se “começo, meio e começo”, como disse tão bonitamente Nego Bispo. Não há queda ou ascensão, porque “o que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo”, ensina Hermes Trismegisto. Navegando na filosofia universal do Um e das “coisas únicas”, Magnólia é jornada-travessia que tem Jorge Ben como fundamento e cosmogonia.
O trabalho com concepção, idealização, direção geral de Marina Esteves reverencia e referencia Jorge Ben ao mesmo tempo em que não se estrutura enquanto obra tributária ao cantor. É nítido que o repertório particular da plateia possibilita o acesso a distintas camadas de leitura nesse sentido; alguém mais familiarizado com a obra do artista carioca terá um envolvimento diferente de outra pessoa menos impactada pela sua frutífera e marcante produção. Seu legado se faz presente na dramaturgia (assinada por Esteves e Lucas Moura) e na concepção musical (Esteves e Dani Nega), além de marcar a própria trajetória de vida da artista, mas é sobretudo pouso-inspiração para um voo-mergulho cênico.
O texto de Lucas Moura costura citações da Tábua de Esmeralda, álbum central para o universo construído na encenação, além de incorporar outras letras de Ben, destacando-se suas criações que contam-cantam de mulheres pretas. Também, na execução musical, estão presentes músicas e trechos, mas Dani Nega compõe trilha original para Magnólia, sendo responsável também pela produção musical e de beats, destrinchando o Um-existente na direção de atmosferas únicas-por-adaptação.
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Assim, ainda que amalgamado às visões-invenções de mundo de Ben, Magnólia é obra que preserva grande autonomia, trazendo potências que fazem emergir a possibilidade de sonhar a si mesma. Ousar sonhar-se, descobrir-se em um espaço do onírico que finca os pés na realidade enquanto salta-voa quase sem gravidade a partir – e, também, em oposição – a ela. Um ser que se percebe fruto de sonho e que aos poucos se dá conta de sua própria capacidade de sonhar: Magnólia se organiza em uma série de quadros, emaranhados com narrativas jorgebenianas, quase como um álbum cujo discurso se acumula a cada faixa.
No palco, Esteves, uma banda (DJ K-Mina, Gisah Silva, Larissa Oliveira e Melvin Santana), espadas-de-são-jorge constituídas do metal de Ogum (na cenografia de Léo Akio), luzes-auras de Matheus Brant e o quase-infinito de possibilidades do videografismo de Gabriela Miranda e Brant. Essa Magnólia-tantas contracena com as presenças e sugestões das diversas camadas da encenação e nas trocas de figurino (de Ayomi Domenica) dá a ver o muito que se é nesse caminho de sonho e descoberta.
É a interpretação de Esteves que conduz as imensas transformações deste ser-sonho. Em sua expressividade corporal, as diferentes formas de existência. No que se diz, a narratividade da exploração e percepção de si diante do outro – seja essa alteridade manifestada no encontro com a esfinge-Hermes, um mentor-mensageiro que pouco revela mas enuncia o mistério, com suas iguais, com a vivência da paixão e do amor, com a construção de uma identidade que é singular mas amparada e antecedida por todas que vieram antes e a força dessa ancestralidade preta.
Não por acaso, a primeira parada de Magnólia em um espaço nomeado na Terra é na Etiópia. Para além do fato biográfico da mãe de Jorge Ben ser etíope, a Etiópia é o único território africano que não se tornou colônia europeia (enquanto é verdade que a Libéria também não fez parte da “divisão” do continente na Conferência de Berlim, a fundação e independência deste estado-nação data do século XIX, com a chegada de colonos negros oriundos dos EUA), existindo enquanto país há séculos – tendo sido por um breve período ocupada pela Itália de Mussolini – e cuja história remonta não apenas à uma dinastia milenar mas aos primórdios da própria ocupação humana no planeta. Se ela, Magnólia, “chega na primavera”, talvez não haja melhor lugar.
E então, o Brasil. Um Brasil de Jorge; Magnólia é o sonho de uma mulher preta e é também o sonho de um país. De Maracanãs lotados, onde Esteves coreografa o futebol como partitura de dança – e a presença do futebol e da teatralidade possível do futebol nos teatros, considerando seu alcance e relevância nessa complexa noção de “povo brasileiro”, é sempre bem-vinda – a sambas e carnavais, há muita vida que pulsa nesse sonho de um futuro agora.
Há algo em Magnólia que faz dela uma peça popular, para todos os públicos, inclusive de todas as idades. Uma ludicidade do sonho, uma vontade de teatro que se apresenta aberta para variadas chaves de acesso, do campo das lembranças, do campo da esperança, do campo da invenção compartilhada. Tudo isso envolvido por uma espiralidade hermetista – e nada “hermética” no sentido do uso mais corrente do termo.
Enquanto Magnólia é as muitas mulheres cantadas por Jorge Ben, Magnólia-Esteves parece também confrontá-las, quase que propondo ir além do que foi narrado – não ser apenas musa ou figura observada, celebrada, desejada, mas ser também a poeta, observante, celebrante, desejante. No encerramento da obra, o fim é começo: parir o sonho, sonhar o parto, então acordar. Ousar sonhar-se é fazer do tempo cíclico uma encruzilhada de infinitos.
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ficha técnica
MAGNÓLIA
Concepção, Idealização, Direção Geral e Atuação: Marina Esteves
Dramaturgia: Lucas Moura e Marina Esteves
Texto: Lucas Moura
Dramaturgismo: Marina Esteves
Pesquisa musical para dramaturgia: Marina Esteves e Lucas Moura
Assistência de Direção: Lucas Moura
Concepção Musical: Dani Nega e Marina Esteves
Direção Musical: Dani Nega e Marina Esteves
Dramaturgia Sonora: Dani Nega, Lucas Moura e Marina Esteves
Produção de Beats, Produção Musical e Trilha Original: Dani Nega
Colaboração de arranjos ao longo de todo o espetáculo: DJ K-Mina (pick-ups e coro) Gisah Silva (percussão e bateria), Larissa Oliveira (Trompete e coro), Melvin Santhana (guitarra, violão e voz)
Desenho de luz: Matheus Brant
Desenho de som: André Papi
Figurino: Ayomi Domenica
Cenografia: Léo Akio
Videografismo: Gabriela Miranda e Matheus Brant
Preparação Corporal e Orientação de Gestos: Ricardo Januario
Preparação vocal: Rebeca Jamir
Musicistas: DJ K-Mina (pick-ups e coro) Gisah Silva (percussão e bateria), Larissa Oliveira (Trompete e coro), Melvin Santhana (guitarra, violão e voz)
Costureiras: Jonhy Karlo e Claudineia da Silva Barros
Aderecista: Edivaldo Zanotti
Modelista: Talita Borges
Assistente de Design: Regina Torres
Design de Jóia da Cabeça: Opvs Magnum
Voz off Hermes: Carlota Joaquina
Arranjo da música “Zumbi”: Kiko Dinucci
Assistência e operação de luz: Letícia Nanni
Consultoria: Roberta Estrela D’Alva
Consultoria em estudos teóricos: Deivison Faustino
Pesquisa biográfica Jorge Ben Jor: Marina Esteves
Acompanhamento processual: Ângelo Fábio
Orientação litúrgica: Mameta Alaíde Honorato da Silva (Kamitina) e Tatetu Arildo da Silva (Kelawê)
Fotografia de divulgação: José de Holanda
Fotografia de cena: Noélia Najera
Vídeos de divulgação: Léo Akio (direção) e Cássio Rothschild (fotografia)
Designer Gráfico: Murilo Thaveira
Serralheria e solda: Fábio Lima
Lojinha Magnólia: Chidi Portuguez, Daniela Campanholo, Isaque Oliveira, Murilo Thaveira
Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Carina Bordalo
Produção: Corpo Rastreado – Leo Devitto
serviço
Magnólia
Data: 17 de outubro a 3 de novembro, de quinta a sábado, às 20h e domingo às 19h. Não haverá apresentação no dia 27/10
Local: Itaú Cultural / Sala Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 - Bela Vista, São Paulo - SP
Lugares: 224 | Classificação: 16 anos | Duração: 90 minutos
Espetáculo acessível em Libras