do sorriso ao sangue
crítica de “LAMPIÃO ou começam nos matando pelos afetos”, da Cia. Clandestina
“O fervo também é luta”. A frase adotada pela coletiva A Revolta da Lâmpada reverbera de maneira potente em “LAMPIÃO ou começam nos matando pelos afetos”. O espetáculo performativo se efetiva como um manifesto cênico através dos corpos em pesquisa da Cia. Clandestina. Na busca pela criação de novos afetos, performatividade e representação dialogam de maneira acertada.
Em uma dramaturgia de relativamente poucas e contundentes palavras – “Como desistir de quem você é? Isso não significa a própria morte? E quantas vezes nós morremos esse mês?”, por exemplo – quatro atos são construídos e apresentados na fisicalidade de Lucas Dantas, Moisés Mendoza, Priscila Santos e Saulo Brandão. Família, punição, morte e manutenção.
O primeiro se inicia praticamente já na entrada do público, ainda que pouco ciente disso. O sorriso no rosto dxs performers parece simpático. A insistência de mantê-los aos poucos faz com que se tornem aflitivos; e a sequência de imagens apresentadas introduz de forma bem didática do que se está falando. Na sequência, o didatismo e a introdução representativa dão lugar à performatividade na potência do real.
O trânsito frequente entre a subjetividade daquelas quatro pessoas em cena – diversas em gênero e orientação sexual – e a escolha pela construção teatralizada de imagens inteligíveis redimensiona a obra; a Cia. Clandestina fala de si e fala do social. Como na frase dita a Eduardo Galeano, escritor uruguaio, por um repórter quando se referia às suas obras, “LAMPIÃO” tem “um olho no telescópio e um olho no microscópio”.
A performatividade dos corpos e a representação das imagens são friccionadas em diversos momentos. Como na utilização do gelo que, se enquanto imagem mantém imutável a palavra dita sagrada (e utilizada, muitas vezes, para fins pouco amorosos – para ser polido) da bíblia, na ‘vivicidade’ do risco da performer – característica do teatro performativo como descrito por Josette Féral – agride e silencia o grito da voz oprimida.
Conforme afirma a pesquisadora francesa em “Além dos Limites” (2015), o teatro performativo “impõe o diálogo dos corpos, dos gestos e toca na densidade da matéria” (p. 129). Dentro desta ‘imposição’ – positiva, vale reiterar – a figura do performer torna-se central: “O performer instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.” (p. 123).
No pungente acontecimento que é “LAMPIÃO”, a ação cênica não poderia se desenrolar de outra maneira. A instauração permanente de um campo de ressignificação de possíveis – fundamentalmente pela demonstração processual de corpos em descoberta, afirmação e resistência – se aproveita dos momentos de representação para deslocar a compreensão do espectador.
Ao mesmo tempo que as demandas apresentadas podem não ser novidade (vale dizer que o título da obra faz menção à uma de suas fontes de pesquisa, o jornal “Lampião da esquina”, apontado como primeiro jornal homossexual brasileiro – publicado em 1978 – a apresentar pautas da comunidade LGBT+), a presença dxs performers evocam necessidades políticas atuais. Neste sentido, Vladimir Safatle, em “O circuito dos afetos” (2015), chama atenção para o fato de que “Mais do que novas ideias, neste momento histórico no qual a urgência de reconstrução da experiência política e a necessidade de enterrar formas que nos assombram com sua impotência infinita se fazem sentir de maneira gritante, precisamos de outro corpo.” (p. 37).
Ao passo que outros corpos possíveis cada vez mais buscam fissuras para lutar por seu espaço de existência, mais estes são massacrados e marginalizados. Djamila Ribeiro, em “O que é lugar de fala?” (2017) – ainda que estruture seu argumento a partir da historicidade de pautas relacionadas ao feminismo negro – nos lembra que “A tomada de consciência sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como inapropriada ou agressiva porque aí se está confrontando poder.” (p. 79).
Confrontar o poder, em “LAMPIÃO”, é a geração de ruídos dentro das expectativas criadas pelas próprias cenas – e pelos próprios corpos. O vermelho que dá o tom da encenação é, sim, o sangue; mas não é só. O glitter da mesma cor é fervo, é luta, é pintura de guerra, é dor, é fluido. A obra toma seu tempo para construir e desconstruir leituras, deixando um grande campo da recepção em aberto. Por momentos, é um desafio apreender racionalmente aquilo que se vê – há de se deixar atravessar e, principalmente, se permitir à suspensão do sentido na busca do novo.
Quando escolhem nomear o último ato do espetáculo “Manutenção” e expor a imbricação de certos valores em nossa cultura através de uma série de músicas, não parece haver muito otimismo; e o coletivo finaliza a obra na mesma disposição da imagem inicial. Os sorrisos, porém, já não estão ali naqueles corpos banhados de sangue. Das máscaras e da invisibilização apresentada no primeiro ato, a trajetória de “LAMPIÃO” nos leva a crueza da realidade em diálogo com discursos que muitas vezes ainda nos passam batido.
No entanto, se a obra parece, ao final, nos deixar apenas com um soco no estômago, vale refletir que, como afirma Safatle, “[…] talvez a única função real da arte seja exatamente esta, nos fazer passar da impotência ao impossível. Nos lembrar que o impossível é apenas o regime de existência do que não poderia se apresentar no interior da situação em que estamos, embora não deixe de produzir efeitos como qualquer outra coisa existente.” (p. 44). Ainda que ofendidos, marginalizados, agredidos e assassinados, vítimas do machismo e da homolesbotransfobia, corpos se potencializam para serem possíveis.
[obras citadas: FÉRAL, Josette. “Além dos Limites”. São Paulo: Perspectiva, 2015; RIBEIRO, Djamila. “O que é lugar de fala?”. Belo Horizonte: Letramento, 2017; SAFATLE, Vladimir. “O circuito dos afetos”. São Paulo: Cosac Naify, 2015.]