arquipélago, destaque, performance, teatro

dos tempos, das definições, das atitudes, das possibilidades

crítica a partir da abertura de processo de JUDITE TRIUNFA, de Paula Aviles (SP). este texto faz parte da cobertura especial da Mostra Solo Mulheres 2024, do Teatro de Contêiner, com curadoria de Tati Caltabiano; amilton de azevedo é uma das pessoas realizando o acompanhamento crítico do festival. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica.

“Quando todo o exército soube que Holofernes tinha sido decapitado, perderam a razão e o conselho. Agitados pelo espanto e pelo terror, buscaram a salvação na fuga.” (Livro de Judite, 15:1)

“Vingança de artista é criar” (Maria Giulia Pinheiro no Núcleo de Dramaturgia Feminista)

Quando começa o triunfo de Judite?  O que foi, é e será necessário para que se possa afirmar que Judite Triunfa?

Judite Triunfa, de Paula Aviles com direção de Maria Fernanda Batalha, que realizou uma abertura de processo dentro da programação da Mostra Solo Mulheres 2024, atravessa milênios em uma encenação – ainda inacabada – que joga com narrativas bíblicas e suas representações, entrelaçando ainda acontecimentos pessoais separados por séculos, irmanados, de alguma forma, pela opressão (e expectativas) de gênero ao longo da história.

Tudo poderia começar no que é contado pelo deuterocanônico Livro de Judite: uma devota viúva, habitante de uma cidade sitiada pelos exércitos de Nabucodonosor, liderados pelo seu marechal, Holofernes, convence os anciões de seu povo que Deus estaria ao seu lado em seu plano de ação. 

Acompanhada de uma serva e em constantes orações, põe-se bela – “Lavou-se, ungiu-se de mirra preciosa, arranjou o cabelo e pôs um diadema. Vestiu-se como para uma festa, calçou as sandálias, pôs os braceletes, o colar, os brincos, os anéis e todos os seus enfeites. O Senhor aumentou-lhe a beleza, porque tudo aquilo procedia, não de uma paixão má, mas de sua virtude, por isso o Senhor deu-lhe uma tal formosura, que apareceu aos olhos de todos com um encanto incomparável.” (Judite, 10:3-4) – e, a partir deste primeiro ato de dissimulação, convence os assírios a deixá-la entrar no acampamento e seduz Holofernes a ponto deste pedir a seu eunuco que a convença de ser sua concubina.

Tudo se encaminha conforme o planejado e, “eis a cabeça de Holofernes, marechal do exército assírio, e eis o cortinado do baldaquino onde se achava deitado, ébrio a cair, quando o Senhor, nosso Deus, o feriu pela mão de uma mulher” (Judite, 13:19). O primeiro triunfo de Judite é um triunfo de seu Deus?

Na sequência, Judite diz ao seu povo: “o Senhor não permitiu que sua serva fosse manchada: ele reconduziu-me a vós livre de toda a mancha de pecado” (Judite, 13:20). Talvez o primeiro triunfo de Judite seja esse: não ter sido violada por Holofernes.


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A história de Judite é um dos temas bíblicos visitados por Caravaggio em suas pinturas barrocas. Em Judite e Holofernes, de 1599, o pintor italiano representou o momento preciso da decapitação. No quadro, Judite não parece exatamente triunfante: afastada, parece hesitante, receosa, desagradada com a própria ação. Judite Triunfa quando é representada por Artemisia Gentileschi em Judite Decapitando Holofernes, de 1612-13: ali, o corpo mais próximo da ação, a posição mais certa do que faz, a expressão séria – e o apoio mais intenso de sua serva.

Em Judite Triunfa, Paula Aviles contextualiza o público dessas histórias, debruçando-se em especial ao triunfo de Artemisia em sua pintura que é também vista por estudiosos como uma possibilidade de vingança: o rosto de Judite seria um autorretrato da artista; o de Holofernes, a face de Agostino Tassi – que a estuprou aos 18 anos. Tassi foi denunciado, julgado e condenado (ao exílio…). Artemisia seguiu pintando; outro de seus triunfos, este póstumo, foi o resgate de sua vida e obra ao longo do século XX, especialmente sob uma perspectiva crítica feminista da história da arte.

Aviles faz da cena não apenas uma possibilidade de exercitar uma refação destes decapitares de tantos Holofernes, mas também um espaço de jogo, reflexão e partilha. Na entrada do público, filmes sendo projetados dialogam com a construção de um amor romântico, de relacionamentos heterossexuais, seus desenrolares, ilusões. 

Depois, espada na mão, cabeças de manequim rolando, uma máscara da deusa Kali e seus atos de destruição do mal. As imagens de Caravaggio e Artemisia são exibidas, ela compõe com ambas. A espada é também tornada espécie de falo, a vingança surge também como deboche; sangue falso se mistura à male tears (o choro simbólico de homens cis que se vitimizam diante de questões de gênero) e há algo de cínico nesta raiva. Uma tiara é colocada na cabeça decapitada do manequim e tudo que se desenha na direção de Maria Fernanda Batalha parece carregar algum sentido, ainda que lateral.

E então, se Judite Triunfa, Aviles também? A atriz e autora relata passagens de sua vida pessoal, de uma relação abusiva e violenta do passado, e o próprio ato de voltar ao teatro depois de tanto tempo afastada talvez seja o próprio triunfo da artista. Quando o telão projeta as muitas definições de abandonar, das acusações e sensações, dos verbos transitivos aos pronominais, as imagens, o texto e a cena apontam para caminhos interessantes de diálogo no desenvolvimento da encenação.

Nestes lances de vingança, fantasias de vingança, representações de vingança, invenções de vingança, a criação em si pode ser o vingar-se. Nos últimos anos, uma série de obras teatrais – documentais, performativas, autoficcionais – parecem surgir e se formalizar com esse intuito, cada uma a seu modo, motivo e linguagem. Parece fortuito, então, considerar não apenas a função para a pessoa criadora deste ato, mas também o que se intenciona ao compartilhar o trabalho com o público.

Em Judite Triunfa, há uma dinâmica costura dramatúrgica entre tempos e fatos, um bom recurso para que a fruição do público embace as fronteiras entre o pessoal e o coletivo, entre tempos, definições, atitudes e possibilidades, sem perder de vista o cerne da obra de Aviles. Ao mesmo tempo, o que se entrega para que a plateia complete o poema: diferente do relato do filme assistido ao lado da amiga, talvez nem tudo tenha que ser apresentado de forma tão nítida. Se não é possível decapitar um marechal para fazer debandar todo o exército, tampouco tomar cada gota de sangue de um inimigo para evitar que ele se reproduza, será que é possível – e desejável – organizar um triunfo que se eternize na construção sutil de reconhecimentos a partir de parte de quem assiste?

logo do projeto arquipélago
ficha técnica
JUDITE TRIUNFA

Atriz e Autora - Paula Aviles
Diretora - Maria Fernanda Batalha

ficha técnica
MOSTRA SOLO MULHERES 2024

Teatro de Contêiner (idealização e produção), Tati Caltabiano (curadoria), Léo Akio (direção de arte, coordenação de comunicação e design), Pombo Correio (assessoria de imprensa), Marcos Felipe (comercial e coordenação de produção), Virginia Iglesias (produção administrativa e financeira), Gustavo Sana (produção executiva e consultoria de projetos), Paloma Dantas (coordenação técnica), Pedro Augusto (coordenação técnica), Camila Bueno (técnica), Lucas Bêda (produção executiva), Sandra Modesto (produção executiva), Sônia Cariri (produção, receptivo, camarim e bilheteria), Thamiris Cariri (lanchonete), Danee Amorim (produção e receptivo), Paula Silva (produção, receptivo e serviços gerais), Isabelle Iglesias (produção e rede social), Nara Oliveira (coordenação de libras), amilton de azevedo - ruína acesa (acompanhamento crítico), Lena - cítrica (acompanhamento crítico).