das águas turvas que não cabem no arco-íris
crítica de “Jaz”, de Koffi Kwahulé, com concepção geral e atuação de Sofia Boito e direção de Joana Dória
Um estupro. A imagem inicial de Jaz é contundente na apresentação dolorosa da temática da obra. Ao adentrar o espaço cênico, o público já é confrontado com a figura de uma mulher de costas, curvada sobre um balde; os machucados próximos da região genital deixam pouco espaço para dúvidas. A história aos poucos se desenha, entre o descaso de um prédio abandonado, o banheiro público de uma praça e a vida desta mulher, cuja identidade é compreendida ao longo da obra.
Narradora e narrativa se mesclam no corpo e nas palavras de Sofia Boito. A intérprete costura imagens enquanto alterna vivenciar e contar o que aconteceu. Na dramaturgia do marfinense radicado na França Koffi Kwahulé, pequenas inserções burocráticas de informes do condomínio — abandonado — geram um estranhamento que intensifica a camada política do texto.
Boito é hábil ao transitar entre esses cortes abruptos, pequenas rupturas que suspendem a intensidade das ações narradas e vivificadas. Tais inserções podem soar tanto como respiro ao público quanto como crítica social que complexifica o dado subjetivo do acontecimento traumático.
A direção de Joana Dória toma a brutalidade do texto de Kwahulé como possibilidade de potências cênicas. Há uma insistência na escatologia, como se Jaz falasse exatamente sobre os dejetos da humanidade. A violência do espetáculo está vinculada centralmente ao estupro, mas esta reverbera para as relações de gênero como um todo e não se dissocia da miséria inerente à situação exposta.
Na cenografia de Boito, Dória e Flavio Barollo, canos expostos constróem um banheiro cuja maioria das águas parece inevitavelmente turva. É curiosa a escolha do objeto utilizado como pia pela atriz — que também faz as vezes de privada para a narrativa. Parece um mictório na horizontal; como se aí já houvesse um signo do masculino e de sua brutalidade.
A encenação de Jaz é permeada pela musicalidade não apenas da dramaturgia, mas preenchida e ressignificada na presença quase fantasmagórica da performance musical de Ligiana Costa, que também compôs a trilha do espetáculo. Os vocais repletos de efeitos compõem distintas atmosferas para a cena, além da figura em si, fora do cenário mas à vista do público. Por vezes, ela parece ser a protagonista da história; em outras cenas, porém, pode ser lida como sua amada ou mesmo como o citado Inquisidor.
Contrapondo as duas mulheres em cena estão os dois técnicos — homens — colocados à frente da plateia. A partir do momento em que Barollo entra em cena para enquadrar Boito na câmera presente na cena, é possível compreender esta ação como uma escolha; o que intensifica-se quando ele a acompanha em uma movimentação pelo espaço, como uma espécie de voyeur — ou mesmo um stalker. Na ação da intérprete de voltar tal câmera na direção do público, uma provocação é lançada: frente ao que se escuta ali, qual a reação possível?
Boito transporta o público pelo vórtice de uma narrativa que se desloca por espaços diversos habitados pela dor. Quando narração e ação se sobrepõem, a história passa a se tornar mais compreensível e menos palatável. Enquanto a merda literalmente transborda de pias e alaga banheiros, a sensação é de que cada vez mais perpetua-se a barbárie. Como se a bestialidade, ao ser confrontada com a beleza, se tornasse ainda mais violenta e raivosa.
Na impossibilidade de purificar-se frente não apenas ao ato em si, mas envolvida em uma sociedade marcada pela marginalização e pelo descaso, essa mulher busca elaborar quem jaz naquele banheiro e quem saiu pela praça, nua, para continuar vivendo. Entre jogar cal em toda a merda e ver-se imersa em águas turvas, parece não haver caminho de volta para habitar novamente as cores do arco-íris.