decupar o concreto, reesculpir o simbólico
crítica de “(instruções para compor uma peça) – Se for viver, leia antes”, do Coletivo Cronópio
foto de Ligia Jardim
Julio Cortázar (1914 – 1984), autor argentino, já veio ao mundo de forma no mínimo inusitada: nasceu dentro da embaixada do país natal de seus pais na Bélgica. A própria ideia de nacionalidade – por nascer em determinado lugar, me é dada uma identidade – já é um conceito que demanda uma série de informações para ser entendido; compreender, então, que se pode nascer em um lado do Atlântico, em um território pertencente à um país que se localiza na outra borda deste oceano, é um ponto de tangência do real no absurdo que, sem grandes debates, poderia exigir um manual de instruções.
Em “Histórias de Cronópios e de Famas”, livro escrito entre 1952 e 1959, publicado em 1962, Cortázar lança um olhar cirúrgico sobre o cotidiano e as relações que estabelecemos entre nós, o tempo, objetos e, porque não, com o próprio sentido da existência. A obra se divide em quatro partes: “Manual de Instruções” se debruça na reconstrução de lógicas – mais ou menos concretas – a fim de reinventar as formas e os motivos de chorar, subir escadas, dar corda em relógios… “Estranhas Ocupações” versa sobre uma família que vive na rua Humboldt, em Buenos Aires: “Somos uma família estranha. Neste país onde as coisas se fazem por obrigação ou por fanfarronada, gostamos das ocupações livres, das tarefas sem importância, dos simulacros que de nada adiantam”. Nesta desimportância do fazer, emergem rumos sobre modos possíveis de existir para além do habitual e corriqueiro. Sobre “Matéria Plástica”, Glória Rodriguez, tradutora da edição brasileira, diz que “(…) esclarece, por exemplo, sobre a maravilhosa aventura de cortar uma pata de aranha e mandá-la pelo correio ao Ministro do Exterior; sobre a conduta dos espelhos na ilha de Páscoa; (…)” entre outras narrativas insólitas. Por fim, a parte que dá nome ao livro: “Histórias de Cronópios e Famas”.
Cronópios e Famas, além das Esperanças, são seres descritos da seguinte forma pelo autor: “Eram tão estranhos que eu não conseguia vê-los claramente, uma espécie de micróbios flutuando no ar, uns glóbulos verdes que pouco a pouco iam tomando características humanas”. É um destes seres que dá nome ao Coletivo Cronópio, companhia teatral formada em 2005 dentro do curso de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Os cronópios “cantam, como as cigarras, indiferentes ao prosaísmo do quotidiano; e quando cantam, esquecem tudo, são atropelados, perdem o que levam nos bolsos e até a conta dos dias”, afirma Glória Rodriguez.
“(instruções para compor uma peça) – Se for viver, leia antes” é a peça que marca a profissionalização do coletivo. Baseado no livro de Cortázar, o que interessa é a forma de decupar o prosaísmo cotidiano à fim de torná-lo poesia. O espetáculo, que estreou em 2009 e desde então cumpriu diversas temporadas, se estrutura em três atos. A dramaturgia parte do questionamento de uma família da Rua Humboldt – uma família composta por seres humanos “comuns”, como insistem em afirmar as personagens, estranhas em todo o seu comportamento e até nos figurinos; destas que buscarão se ocupar do sem-sentido que nos cerca – acerca da necessidade de um manual de instruções para viver.
Assim, trechos de “Manual de Instruções” fazem parte da dramaturgia. Alice Nogueira, diretora e dramaturga do coletivo, joga de forma muito hábil não apenas com a textualidade proposta por Cortázar, mas também com a articulação de imaginários que se põem em cena. O espetáculo se permite seguir alinhado com as instruções concretas e também fazer troça e propor novas formas – como na cena das “instruções para chorar”, onde um personagem insiste no original cortazariano e é confrontado por seus parceiros.
A potência de “(instruções)” é trazer, na própria linguagem, o tensionamento entre este real decupado e o simbólico que pode emergir de sua reconstrução a partir de lógicas particulares. A relação entre a ação física de um ator e a narração desta ação, feita por outro, presente em diversas cenas, por vezes entra em conflito: em alguns momentos, a primeira conduz a segunda; isso se inverte, elas se tornam simultâneas, se chocam, se opõem…
É como se a vida, sabendo que “lá no fundo está a morte”, como dizem as instruções para dar corda no relógio, necessitasse se antecipar à qualquer instrução. Como se não houvesse teoria capaz de dar conta de uma prática que se constrói – e se descobre – no fazer. Esta disputa – que me permitam o lugar-comum – do que veio antes, se o ovo ou a galinha, dá a “(instruções)” um tom predominantemente cômico. O humor é, portanto, a base do espetáculo, mas isso não quer dizer que não exista algo para além do riso; que digam as maneiras de ensinar alguém como lidar com despedidas.
A encenação de Nogueira transita sem medo entre as linguagens e elementos do teatro contemporâneo, fazendo uso dos recursos que necessita para manter o espetáculo fluido e dinâmico. A relação entre os atores (nesta temporada, Ana Junqueira, Gabriel Labaki e Leonardo Birche), por vezes quase personagens de si mesmos, deixa transparecer para o público o quanto para eles é divertido habitar aquele universo – o que é fundamental, talvez, para fazer com que não sejam apenas os leitores de Cortázar que embarquem nesta reconstrução do (absurdo do) real – onde “se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão”.
Na contagem regressiva para a morte que encerra o espetáculo, um desespero latente coexiste com a aceitação de que, talvez, o sentido da vida esteja mesmo na compreensão das instruções para tomar café da manhã, para abrir uma porta; porque “lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância”. Talvez o sentido da vida sejam mesmo estas estranhas ocupações que teimamos em buscar, contra toda a lógica utilitarista de um mundo que nos cerca. Talvez seja passar toda uma existência buscando um fio de cabelo amarrado lançado propositalmente ralo abaixo, comprando apartamentos vizinhos e invadindo o esgoto. Como se o que restasse, na busca da instrução que nos prepare para a morte iminente, fosse mesmo um bom jantar com nossa família, à mesa na rua Humboldt.
[todas as citações são de Julio Cortázar: “Histórias de Cronópios e de Famas”; tradução Glória Rodriguez. Editora Civilização Brasileira; 3ª edição, 1977.]