orgulho, teatro

para que corpos não sejam mais tornados zonas de conflito

crítica de “Inhaí — coisa de viado”, do Coletivo Inominável.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Não há quarta parede em Inhaí — coisa de viado, do Coletivo Inominável, avisam os três performers já na entrada do público. O pacto estabelecido desde então é de uma troca direta e afetiva com a plateia. Há uma despretensiosa tentativa de subverter algumas convenções teatrais — e mesmo contornos do que seria ou não teatro.

O que se estrutura na trajetória da encenação, dirigida por Cezar Zabell com dramaturgia dele e de Fernando Pivotto (que também atua), é uma peça-festa-manifesto que articula leveza e diversão com a dor da violência. É sábia a decisão de afirmar, não apenas uma vez, o quanto aquele recorte é específico dentro do ser viado no Brasil. Os três performers podem ser lidos como brancos e habitam o diverso — ainda que perigoso, em certos aspectos — centro da cidade de São Paulo.

Nas cenas, vivências e relatos oscilam do concreto para o metafórico. Com um jogo interessante dentro da proposta do teatro documentário, o animal veado é evocado em sua fisiologia e comportamento — o gesto que representa a galhada parece beber dos movimentos do voguing. A busca de Inhaí passa por apropriar-se destas coisas de viado. Uma certa feminilidade — um termo discutível, mas que no geral é lido dentro de um certo padrão — nos trejeitos de Pivotto, Cayke Scalioni e Alexia Twister (Matheus Miranda surge maquiado desde o início, mas monta sua drag queen apenas no final do espetáculo) surge como afirmação, mas também como possibilidade de escrachar certas estereotipias.

A representação do homossexual na mídia também é lembrada — e problematizada — nos tantos bordões de programas como Zorra Total. Ao “onde foi que eu errei?” de Maurição (Jorge Dória) referente aos comportamentos não-normativos de Alfredinho (Lúcio Mauro Filho) a encenação justapõe manchetes de crianças viadas (para usar a expressão popularizada por Iran Giusti no tumblr de mesmo nome) brutalmente espancadas e assassinadas pelos próprios pais.

“Inhaí — coisa de viado”, do Coletivo Inominável / foto: Giovanni Fernandes

Os três performers relembram histórias de infância — como o coelhinho de Scalioni, inspirado no Sansão da Mônica de Maurício de Sousa — e transitam entre as dores e as delícias de serem quem foram, são e serão. O cerne de Inhaí é precisamente olhar para o passado e para o presente a fim de projetar dias melhores. Neste sentido, a direção de Zabell mostra-se acertada no ponto que transforma a encenação em um grande compartilhamento afetivo.

O público ouve, reage, se coloca; os performers trazem fatos e dados, mas também dançam e celebram. Ainda morrendo, mas dançando e lutando, diz uma projeção. Em um dos poucos momentos onde as metáforas exploradas pela dramaturgia tornam-se imagens cênicas, uma síntese poderosa da encenação: enquanto Pivotto versa sobre como corpos vistos fora das normatividades são tornados campos de batalha, Twister posiciona pequenos soldadinhos de brinquedo sobre o corpo dele. Reverbera a assunção de que as demarcações dessas zonas de conflito são impostas por agentes externos, vozes hegemônicas.

Surge também o debate sobre a cultura drag, fortemente conectada às questões de gênero e sexualidade — ainda que seja uma forma de expressão artística, performatividade e militância caminham juntas na abordagem do Coletivo Inominável. Twister conta que montar-se é extravasar algo que já se é por dentro; talvez seja como performar a liberdade de sua subjetividade naquela construção.

Estamos em 2019 e o mapa-múndi projetado desenha um cenário triste ao olharmos as situações de países no que diz respeito à lida com a homossexualidade. Inhaí também propõe que o público engaje-se; seja compartilhando uma notícia boa, seja colaborando com espaços como a Casa 1, seja lembrando das tantas existências marginalizadas que nos cercam. Com franqueza e didatismo afetivo, o espetáculo estabelece-se como uma iniciativa possível de resposta aos nossos tempos. Olhar para as estrelas, dançar, cantar, brincar: coisa de viado é ter o direito garantido de existir em plenitude.