imaginar é preciso
crítica de “As Três Marias”, do Núcleo Chicote de Língua.
Uma placa localiza a ação: Rua Artemis, Jardim Fiorello — Itaquaquecetuba. O Rio Tietê é um vizinho próximo, daqueles que muitas vezes incomoda. As enchentes em bairros localizados na região de várzea do rio são constantes; também não são poucas as tragédias.
O espetáculo infantil As Três Marias, do Núcleo Chicote de Língua, conta a história de três irmãs que lá vivem. Maria Melancolia, Maria Alegria e Maria Faminta passam o dia à espera de sua mãe, que trabalha no centro da cidade, do outro lado da linha do trem. Logo no início, o desespero da situação se apresenta: a dificuldade da avó para superar a rua alagada. Porém, o que se sucede após a aparente fatalidade é uma ode à imaginação.
A encenação de João Batista Júnior extrai uma leve e bela poesia frente à circunstâncias adversas. A ludicidade da obra se verifica na simbólica e engenhosa cenografia de Juão Nin. Os guarda-chuvas ganham movimento como a enxurrada e, no meio deles, as tantas vidas que se escondem, se inventam e se perdem entre as tristezas da realidade e as possibilidades do teatro.
Cabe destacar o trabalho dos contrarregras David Costa e Tay Martines neste sentido — a impressão é de que muito mais pessoas estão espalhadas pelo espaço. As crianças são rapidamente capturadas pela magia do cenário, e se mantém interessadas pelas histórias das irmãs — Adrielle Rezende, Amanda Preisig e Ana Carolina Marinho são carismáticas; ainda que não haja muitos momentos de cena aberta, as atrizes têm a escuta atenta para interações possíveis.
O Núcleo Chicote de Língua nasce dentro do escopo da residência artística do Coletivo Estopô Balaio no Jardim Romano, vizinho do Fiorello. Lá, os artistas desenvolvem, entre outros projetos, trabalhos de formação e fruição artística com as crianças da região.
Na dramaturgia assinada por Batista Júnior em colaboração com Rezende, Preisig e Marinho são encontradas referências ao imaginário construído pelo Estopô Balaio — como a participação do ator convidado Júlio Lorosh no papel de Paulo Barqueiro, personagem (e ator!) de A cidade dos rios invisíveis, talvez o trabalho de maior destaque do grupo.
Um audiotour iniciava a longa jornada, na travessia entre as estações Brás e Jardim Romano da CPTM. Ali, evocavam-se as Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino em uma reinvenção do trajeto realizado diariamente por milhares de pessoas que vivem à margem e trabalham no centro.
Em As Três Marias, a linha do trem afasta a mãe cotidianamente de suas filhas. Mas há também a linha do horizonte e a linha d’água. Há os dados que apontam para os lugares específicos onde tais tragédias acontecem, mas não se trata de uma obra documental. As crianças estão focadas no brincar de inventar das personagens; assim, o Núcleo Chicote de Língua constrói poeticamente uma cama para falar de luto, perda e espera.
A trilha original de Marco França, que assina também a direção musical (e os arranjos, ao lado de Daniel Maia), embala a trajetória do espetáculo. E a canção Quando Fecho os Olhos, de Nin, Rezende, Preisig e Marinho é uma pérola que cresce ao longo da trajetória da peça, tornando-se síntese do discurso de As Três Marias.
Da ingênua saudade da criança, desenvolvem-se ferramentas para suportar as adversidades da vida. No ato de imaginar se enfrenta o medo; seja de ficar só, seja do futuro e do risco de virar pedra na cidade. Quando os tantos guarda-chuvas se acendem, a lembrança doce de que por trás das nuvens que encobrem o céu há uma noite tão brilhante que pode iluminar até mesmo as águas mais turvas.