arquipélago, destaque, teatro

de toda a vazão que cabe num corpo

crítica a partir de Hileia: semeadora das águas, da Cia. Mundu Rodá. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou / A vontade do rio de voltar / Às vezes sacode de algum lugar / Ele dorme até a chuva chegar / Mas a tempestade vem anunciar / E uma enchente lembra a população / Que o que é rua antes era vazão / (…) / Minhas Iarinhas andam cantando / Suas ladainhas para mim (Iarinhas, de Luiza Lian)

Na primeira página do programa de Hileia: Semeadora das Águas, da tradicional e longeva Cia. Mundu Rodá, conhecida por sua pesquisa em torno de manifestações tradicionais brasileiras, lê-se a definição encontrada no Google (fornecida pelos dicionários Oxford) do termo hileia: “1. denominação dada à imensa floresta equatorial amazônica por Alexander von Humboldt (1769 – 1859), naturalista alemão, e Aimé Bonpland (1773 – 1858), naturalista francês. 2. a Amazônia brasileira”; também está lá sua origem etimológica, levemente alterada da encontrada no buscador: “do grego hulaîa, feminino de hulaîos, -a, -on, da floresta, selvagem, material”.

Olhar para Hileia a partir de seu nome, suas significações e implicações parece um dos muitos caminhos interessantes a se traçar para pensar sobre a obra, com dramaturgia de Dione Carlos, e seus tantos desdobramentos, entre metáforas – a personagem central, que leva um dos nomes da Amazônia, é “uma mulher prestes a perder a visão”, como aponta a sinopse – e produções simbólicas, entre a materialidade poética e o caráter de denúncia presentes por toda a encenação.



Segundo Gerd Kohlhepp, quando Humboldt nomeia “as florestas sempre-verdes dos trópicos equatoriais” Hylaea, está utilizando um termo do historiador grego Heródoto, que, conforme Gastão Cruls aponta em Hiléia Amazônica, usara o termo para descrever bosques em seus escritos. Aí habita uma primeira questão interessante de ser pontuada: Cruls lembra que para além de ocupar cerca de 50% do território brasileiro, as dimensões da Hiléia Amazônica fazem com que ela se espalhe por diversos países do continente.

Assim, Hiléia é muito mais do que a Amazônia brasileira. Esta Hileia, da Mundu Rodá, com direção de Ana Cristina Colla, de reconhecida trajetória no Lume Teatro, também tem um quê de presença que ignora fronteiras. Na cena, Juliana Pardo faz de si corpo-rios, que em seu fluxo carrega tempos e distintas existências. Ainda pensando sobre os nomes, as palavras e as origens, é curioso observar que a primeira nomenclatura do hoje chamado de rio Amazonas presente em registros europeus é rio Marañón. A palavra, raiz de Maranhão, pode vir do espanhol e referir-se aos cajueiros; também especula-se que por trás do termo “esteja a ideia de que ali não era o mar”. Mas há, ainda, a possibilidade da etimologia estar ligada à expressão “o mar que corre” em tupi-guarani, conforme apontam algumas fontes.

Fato é que, desde que Francisco de Orellana (1490 – 1550), colonizador espanhol, realizou uma expedição para descer “o imenso paraná-assu dos tupis, o batismo do rio Amazonas correu mundo, evocando imagens da mitologia grega e das narrativas indígenas”, como apontam Aldrin Moura de Figueiredo, Rafael Chambouleyron e José Luis Ruiz-Peinado Alonso, autores da apresentação de Amazônia e história global. E completam: “da natureza à história, a ideia de Amazônia começava a ser construída”.

Hileia: Semeadora das Águas não é exatamente um espetáculo sobre a Amazônia, ou sobre o rio Amazonas. É sobre mulheres e águas, rios que correm livres para o mar, rios que são interrompidos por barragens, rios que são soterrados. Histórias de gerações de uma família, de encantados, do que correntezas trazem e levam. Mas nesse jogo entre natureza e história, ficção, fé e realidade, são muitas as vozes evocadas; mesmo que neste texto naveguemos entre nomes outros, há algo de recorrente nestas fabulações históricas, sejam as invenções que habitam espetáculos de teatro e as ficções coloniais de “descobrimentos” e seus relatos: caminhos sinuosos que transitam entre materialidades e imaginários.

Orellana chama o rio de Amazonas por associar mulheres indígenas – possivelmente icamiabas – que teriam confrontado sua expedição com as guerreiras da mitologia grega. O mito encontra algo do cotidiano neste trajeto, dentro daquilo que se pode compreender e elaborar e o tanto que escapa. A Mundu Rodá faz de uma narrativa familiar de Pardo inspiração, pouso-ninho sobre o qual o voo de Hileia se dá. A história de um avô é tornada de uma avó e lá estão na cena quase como sacis capturados em garrafas as muitas águas coletadas de muitos rios. 

E o que pode contar a água de um rio? O quanto pode dizer quem as coleta como memorabilia, fazendo de seus pequenos vasilhames um altar a ser cultuado e lembrado? Hileia: semeadora das águas torna essa fonte feminina como a água doce que corre, de paraná-assus na direção do mar e das infinitas gotas que evaporam antes de chegar a um destino final. E há destino final da vazão que corre?

Tudo se torna outro e Juliana Pardo, em cena, dá a ver toda a vazão que cabe num corpo. Da memória fazem-se personagens e de sua família faz-se bacias hidrográficas. Os vinte e quatro anos de pesquisa da Mundu Rodá estão corporificados na intérprete; ao longo de toda a encenação, Juliana-Hileia se move com a precisão do rio que sabe das curvas, charcos e pororocas. Com exceção de momentos pontuais – em sua interpretação da criança que brinca, construindo relações com o público – o que se vê é uma atriz plenamente consciente de cada pequeno movimento, como quem sabe que a água estancada escapando de uma barragem traz beleza em sua busca, certeira enquanto tateia.

Evocando tempos e correntes, Pardo e seu corpo-rio carregam duas décadas de investigação em torno de manifestações tradicionais; não há exatamente menções diretas a elas na gestualidade da intérprete, mas é visível sua presença enquanto brincante-atuadora. Nesse sentido, observar Alício Amaral e Amanda Martins tocando em cena é quase um convite à desatenção; a rabeca, os cantos, as músicas e suas execuções: desviar o olhar para isso é deixar de ver Pardo contando-vivendo essas histórias. As projeções, assinadas pelo designer audiovisual Yghor Boy, por vezes também quase conflitam com a narrativa corporal de Pardo, do mesmo modo que a iluminação de Eduardo Albergaria. É como se as camadas de Hileia, sob a direção de Colla, ora ganhassem terra, ora se encharcassem.

Do mesmo modo, a dramaturgia de Carlos encontra algumas fricções nem sempre bem-vindas. Na busca por dar a ver a questão ambiental de forma direta, cena e texto por vezes parecem o encontro das águas do rio Negro e Solimões: correm juntas, e ao final serão una, mas por certa extensão correm paralelas em suas densidades. No todo, Hileia: semeadora das águas, encara frontalmente questões dos nossos (e já de outros) tempos; corre, como rios soterrados e sempre cheios de vontade de vir à tona, uma pulsão do feminino, ecoando nas gerações representadas.

Há poesia e há o sufocamento na obra da Mundu Rodá. Belo Monte e outros desastres ambientais são evocados, a realidade de caboclos e ribeirinhos para muito além do encantamento das águas se anunciam, e aqui se vê então um teatro que olha para a situação atual do planeta através de fabulações que partem, ainda que como livre inspiração, de narrativas biográficas.

Teatralidades populares, assim, são atravessadas pela performatividade contemporânea de um jeito singular em Hileia. Da dramaturgia à interpretação, passando por músicas, projeções e luz, a Mundu Rodá busca operar a mobilização de espectadores entre a racionalidade didática – por vezes, não tão sutil, e, por consequência, talvez não tão eficaz – e uma produção de sentidos que passa pela experiência simbólica proporcionada pela obra.

Águas que se bebem, águas que se louvam, águas que se odeiam, águas em que se mergulham, águas em que se banham, águas que faltam, águas em excesso, águas interrompidas, águas. Hileia, mulher-rio, faz do teatro bacia hidrográfica e de cada veia onde o sangue corre pulsão de vazante. O que se soterra se esquece, o que emerge se contamina. Há todo um universo entre duas margens de um rio. Que se possa habitar tudo livremente, da nascente à foz. Se não, que tudo que evapora no caminho volte como chuva.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
Hileia: semeadora das águas

Direção: Ana Cristina Colla
Co-Direção: Alício Amaral
Atuação: Juliana Pardo
Músico e Musicista em Cena: Alício Amaral e Amanda Martins
Dramaturgia: Dione Carlos 
Designer Audiovisual: Yghor Boy
Figurinos: Awa Guimarães 
Visagismo: Tiça Camargo
Direção musical: Alício Amaral 
Criação musical: Alício Amaral, Amanda Martins e Juliana Pardo
Cantigas: Baião de Princesas - Casa Fanti Ashanti, Família Menezes e Grupo A Barca e Canção dos Encantados - Maria Zenaide 
Investigação corporal - Butoh Dance: Yumiko Yoshioka
Tradução e Mediação de Contato/Produção (Yumiko Yoshioka): Eduardo Okamoto
Treinamento corporal: Lu Favoreto e Juliana Pardo
Investigação vocal: Lari Finocchiaro, Andrea Drigo e Letícia Góes
Concepção Cenário: Giorgia Massetani 
Luz: Eduardo Albergaria
Operação de Luz: Felipe Stucchi e Kenny Rogers
Captação das imagens Rio Jureia: Laboratórios Cisco
Equipe de produção: Corpo Rastreado - Lucas Cardoso
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Marina Franco
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Créditos da primeira etapa do projeto
PESQUISA E CRIAÇÃO
Assistência de Direção: Natacha Dias e Alício Amaral Designer Audiovisual: Clara Moor e Julia Ro Figurinos: Thaís Dias Cenário e Cenotecnia: Wanderley Silva Provocadores dos Estudos Cênicos I e II: Daniel Munduruku, Francois Moïse Bamba, Patrícia Furtado e Adriano Sampaio Tradução e Mediação de Contato / Produção (Francois Moïse Bamba): Laura Tamiana Captação das imagens Rio Jamari e das crianças da aldeia jupaú, T.I. Uru Eu Wau Wau - Povo Uru Eu Wau Wau; e desenhos criados pelas crianças da Aldeira Tubatuba, T.I.Xingu, Povo Yudjá: Clara Moor