os muitos nomes de um machado (ou tantas vozes não cabem num vinil)
crítica de “Guanabara Canibal”, da Aquela Cia. de Teatro
foto de Lenise Pinheiro
“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”, questiona Eduardo Galeano, no prefácio escrito em 2010 para “As veias abertas da América Latina” (p. 7). O autor uruguaio, que nasceu (1940) e faleceu (2015) em Montevidéu, ficou conhecido pelo livro citado; sua obra, porém, transcendeu este trabalho, escrito ainda em sua juventude.
Ao longo de sua extensa produção, Galeano, primeiro jornalista e depois escritor, refinou-se na forma, compreendendo as possibilidades dos diversos gêneros literários, mesclando história, política, prosa e ficção. Cada vez mais hábil na criação sintética de imagens poderosas, muitas de suas obras são compostas de pequenos parágrafos capazes de denunciar o terrível das colonizações – ou a beleza dos povos nativos e suas tradições, além da poesia do cotidiano.
Ainda em “Veias abertas”, na introdução, afirma que “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” (p. 25). A obra é extremamente densa, e isso se dá por sua intenção de, ao mesmo tempo, realizar o levantamento histórico de séculos de opressão e buscar compreender os mecanismos que ainda operam hoje.
O programa do espetáculo “Guanabara Canibal” afirma que “O ano poderia ser 1565, 1965, 2015 ou 2065. Não se sabe: existe uma produção de tempos nisso que a gente chama de contemporâneo”. Ao trazer para a cena um conflito ocorrido no século XVI, a Aquela Cia de Teatro volta um olhar profético para o passado, descortinando as relações de colonização vivenciadas então – e as que permanecem.
Na direção de Marco André Nunes a densidade discursiva – e uma bem vinda pretensão – encontra amparo em uma encenação múltipla, ágil, com música executada ao vivo por Anderson Maia e Pedro Leal David (Felipe Storino assina a direção musical). Trata-se de uma obra cujo enredo, na dramaturgia de Pedro Kosovski, tem em si potencial para conduzir o espectador; um público mais afeito ao teatro contemporâneo talvez possa fruir o espetáculo de forma mais ampla.
Antes da peça começar, um letreiro neon anuncia o aniversário do Rio de Janeiro. Uma mulher (Carolina Virgüez), um menino (Zaion Salomão) e três homens – um branco (João Lucas Romero), um mestiço (Matheus Macena) e um negro (Reinaldo Junior) – colocam um vinil para tocar. É a narração da fundação da cidade. Tomada por uma indigestão, a mulher resolve interromper aquilo e contar outra história. A que não foi registrada pelos vencedores; a que não cabe nem no lado B de um vinil.
Galeano, no prefácio já citado, afirma que “a autodeterminação começa pela boca” (p. 7). Ainda que ele se refira especificamente à fome, cabe traçar o paralelo com “Guanabara Canibal”. A antropofagia, já muito discutida e explorada em seu contexto cultural, aqui se realiza enquanto prática concreta, espiritual e de vingança dos Tupinambás. Na absorção do colonizador assassino (Romero) pela indígena Guanabara (Virgüez), este, como que amaldiçoando a própria carne, afirma que quem comê-lo nunca irá esquecer.
Como se a lembrança do acontecido fosse disparada pela narração do vinil, a encenação nos transporta para a aldeia Karióka do séc. XVI. Aos poucos, o elenco passa a estabelecer outra configuração, a criar um outro possível. Projeções localizam os acontecimentos históricos sendo encenados, mas o desenvolvimento da ação cênica redimensiona e transcende aquele tempo-espaço definido.
Na “negociação” entre o colonizador e o indígena, a dramaturgia de Kosovski não se esgota no campo realista daquele momento; a encenação, em um crescente da partitura dos atores e da música, também transborda. O micro passa a evidenciar o macro; foi da primeira colonização que todas as outras se sucederam.
Grande acerto do espetáculo é compreender que as muitas opressões se deram das mais diversas formas – dentro e fora do escopo do Estado, dentro e fora de uma chancela legalista. Também, compreender a violência em transformação; sua naturalização, suas repetições. Voltando a Galeano: “Não tem sido a nossa história uma contínua experiência de mutilação e desintegração, disfarçada de desenvolvimento?” (p. 363)
A mestiçagem é encarada aqui não enquanto nascimento de uma democracia racial, mas em toda sua dialética; um novo não-lugar criado, com origem e identidade em permanente dúvida e disputa. Não por acaso, grande parte da narração de “Guanabara Canibal” parece estar nas mãos de Macena, o mestiço.
Em momentos quando uma ferramenta já utilizada pelos nativos passa a ter o nome de “machado” ou quando o disco de vinil é deixado de lado, é como se fosse a descoberta em ação deste novo povo. Criado a partir do embate cruel de tantas vozes, ritos, conquistas e guerras, ele pesquisa e passa a compreender sua própria complexidade; “…porque na história dos homens cada ato de destruição encontra sua resposta, cedo ou tarde, num ato de criação.” (p. 372), nos lembra o autor uruguaio.
O ato de criação se dá não apenas na compreensão de que, dentre as vozes soterradas pela história oficial nem tudo foram flores – e que nem por isso elas devem deixar de ser ouvidas; são, pois, outros possíveis – mas também na própria pesquisa de linguagem do espetáculo. A instalação cênica de Nunes e Marcelo Marques faz uso de certa maquinaria cênica – desde bexigas explodidas até redes que aprisionam o colonizador – e a direção propõe imagens visualmente muito potentes, desde projeções até coreografias, passando por uma sucessão de quadros estáticos no momento apoteótico da encenação.
Ao término desta apoteose – quando já parece que não há mais o que ser dito – uma imagem se constrói de forma inicialmente despretensiosa. Salomão, o menino, começa a jogar petecas para o palco. Em uma sugestão quase cômica, ele mira em seus colegas de elenco, sentados, inertes; muitos acertam. No entanto, após algum tempo, ao olhar para o piso de terra, aquelas inúmeras petecas parecem sugerir um cemitério. As plumagens, como lápides de indígenas, ocupam todo o espaço. A Guanabara mestiça, nascida de tantos povos, nasceu de muitas mortes.
[obra citada: Galeano, Eduardo. “As veias abertas da América Latina”; tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2012]