a gota d’água de nossas joanas que sempre foram pretas
crítica de “Gota d’Água {PRETA}”, com concepção de Jé Oliveira.
No prefácio ao texto de “Gota d’Água”, de 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes afirmam que “o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação, ocupa o centro da realidade — tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretude, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional”.
Agora, 44 anos depois, “Gota d’Água {PRETA}”, busca, nas palavras de Jé Oliveira — que assina a idealização, concepção e direção geral do projeto — uma “restituição racial” do imaginário que diz respeito à essa identidade nacional. Ao enegrecer não apenas o elenco, mas o pensamento discursivo por trás da montagem, Oliveira realiza uma tentativa de atualizar o programa proposto por Pontes e Buarque no prefácio e na obra.
Como na intenção original de enfatizar a palavra, Oliveira mantém a versificação do texto, em um diálogo interessante com o spoken word de Slams de poesia e, fundamentalmente, com o rap na elaboração de uma vocalidade entre o canto e a fala. Nesse sentido, trata-se de um aprofundamento em relação à sua última obra, “Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens”, assumidamente tributária ao legado dos Racionais MC’s. A estrutura de peça-show de seu último trabalho, extremamente narrativo, dá lugar, aqui, ao trânsito entre as situações dramáticas e propósitos épicos.
Na parede ao fundo do palco, seis representações de Orixás parecem zelar pela arena (esta, construída de maneira talvez mais simbólica do que estruturante, visto que a peça se apresenta bem frontal). Penduradas no proscênio, flâmulas trazem em sua costura bandeiras do Brasil e nomes. Vítimas da violência do estado, das milícias e das classes dominantes. Muitas são ativistas, como Dorothy Stang, Rô Conceição, Nilce de Souza e Marielle Franco.
O povo tem história, tem aspirações. E vê cotidianamente aqueles que lutam por tais interesses sendo enterrados . De forma esperançosa, diz-s e que se tornam sementes. Em nosso país, o povo vem sendo massacrado em todos os sentidos. O povo preto, cada vez mais em levante, é aquele que mais sofre. Ao observar a narrativa de Buarque e Pontes, chega a ser assombroso que apenas quase 50 anos depois um elenco negro protagonize “Gota d’Água”.
“Gota d’Água {PRETA}” em poucos momentos já se estabelece para os olhos do espectador como a possibilidade mais factível de se olhar para a comunidade da Vila do Meio-Dia. A despeito de interpretações memoráveis de Joanas — com destaque para Bibi Ferreira, a primeira, lembrada em voz e justa homenagem nesta encenação — é necessária uma leitura muito contaminada por um imaginário colonizador para não vê-la como personagem negra.
Oliveira afirma no texto do programa do espetáculo que a historiografia do teatro não registra outras montagens de elenco negro. Ao racializar o olhar sobre um texto cuja questão de classe está imbricada em cada linha, o presente projeto aponta, corretamente, para a branquitude do teatro brasileiro — algo que, felizmente, vem mudando nos últimos anos com a formação e presença maciça de coletivos que trazem a questão racial não apenas como tema, mas como pressuposto ético. “É preciso, de todas as maneiras, tentar fazer voltar o nosso povo ao nosso palco”, diziam Pontes e Buarque — e o povo não é majoritariamente branco, como parece ilustrar muitas vezes nosso palco (e nossas plateias…)
Na obra, há duas linhas de tensão principais: a tragédia pessoal de Joana — ainda que representativa de muitas mulheres; e aqui, de mulheres negras — em relação a Jasão e o conflito de classe entre os moradores da Vila do Meio-Dia e Creonte, o dono dos imóveis do conjunto.
Creonte é o único personagem representado por um ator que poderia ser socialmente lido como branco. E Rodrigo Mercadante se destaca em seu trabalho como o antagonista da narrativa. As escolhas da direção dão grande liberdade ao intérprete na construção desta representação ao mesmo tempo de classe e raça. O futuro sogro de Jasão apresenta-se como o pensamento — e as ações — de uma elite dominante; empresários em conluio com as forças políticas e policiais.
O numeroso elenco traz qualidades distintas em suas interpretações. Salloma Salomão é um Egeu carismático, mas cujo tônus não parece capaz de efetivamente manter a mobilização dos moradores no enfrentamento do cínico Creonte de Mercadante.
Dani Nega e Aysha Nascimento, respectivamente Nenê e Corina, conduzem bem o ritmo da longa encenação. Nascimento também traz a potência de uma Pombagira, que abre o espetáculo como numa abertura de gira. A “feitiçaria” da Medeia de Eurípedes é aqui concretizada na possibilidade do palco como terreiro de umbanda — algo já apontado no texto de Buarque e Pontes e assumido com força nesta encenação.
Oliveira é Jasão, o sambista — de um hit só — que, sendo lentamente cooptado por Creonte, acaba por trair sua classe e tornar aquele que dará seguimento ao poder patriarcal — claro que sua filha, Alma, não poderia sucedê-lo; além do recorte racial proposto, a apresentação de “Gota d’Água” nos dias de hoje escancara também o machismo arraigado por toda a narrativa. Nos confrontos frontais com Joana, Oliveira carrega em sua interpretação intenções que parecem buscar ir além do conflito dramático e estabelecer a relação pessoal dentro de um quadro social mais amplo.
E como Joana, a cantora Juçara Marçal, estreante nos palcos, traz uma grande força em sua voz. Na oralidade, Marçal desenha a complexidade desta Medeia contemporânea. A potência vocal vista nos shows do Metá Metá, sua banda, no entanto, não parece explorada por completo. Marçal desenha uma Joana contida e, nos arroubos explosivos da personagem, sua inexperiência como atriz é sutilmente perceptível por suas ações corporais. Completam o elenco Ícaro Rodrigues, Mateus Sousa e Marina Esteves — curiosamente, única atriz a alternar papeis; sendo uma das comadres da Vila e também Alma, filha de Creonte.
Com poucas adaptações no texto — alguns cortes e inserções; além da supressão de personagens pequenos, absorvidos por outros — e seguindo, de maneira própria, as rubricas, a encenação opta por não levar à cena agressões físicas mais pesadas de Jasão. Em certo momento, a dramaturgia original diz que “Jasão agarra Joana pela cabeça e bate contra a parede”. Há sim gestos violentos, mas muito mais comedidos do que os sugeridos por Pontes e Buarque. Sobre a violência verbal, há um aviso bem-vindo no programa do espetáculo. É um acerto da obra que, ao trazer ao centro o paradigma racial, não se esquece das evidentes e necessárias questões de gênero.
Os procedimentos de atualização da obra se apresentam como samples, não apenas nas mixagens musicais mas também nos comentários das personagens. Nos figurinos de Eder Lopes, 1975 se evidencia mais do que 2019; na cenografia de Júlio Dojcsar, os tempos parecem mais sobrepostos — a bandeira sangrando, pouso de toda ação, grita aos nossos dias. Há, então, uma busca de friccionar os períodos, mas com o olhar fundamentalmente sobre o agora.
Nesse sentido, é raro que uma cena passe incólume à inserção de algum comentário pertinente ao nosso cenário sociopolítico. É um reforço ao discurso metafórico — que já se desenha cristalinamente — da encenação, mas que por vezes parece excessivo. É nítido que certos comentários geram um riso fácil, uma identificação confortável do público (de esquerda) com a obra. Ao mesmo tempo em que isso pode afastar olhares mais divergentes, também se configura como um alívio; a sensação de estar com os seus nos tempos que correm.
As canções, presentes ou não no texto original, dão fôlego para a encenação de cerca de três horas, e a dramaturgia musical de Oliveira, ainda que por vezes gere certo estranhamento, acompanha de modo fluido os acontecimentos da narrativa. Quando os personagens da Vila tornam-se efetivamente coro, a classe que canta junto escancara a impossibilidade da conciliação entre subalternos e dominantes — como se o contraste antecipasse a tragédia não de Joana, mas de todos os explorados diariamente.
A mera realização de “Gota d’Água {PRETA}” configura-se como um acontecimento histórico e admirável. De certo modo, é uma montagem que já deveria ter ocorrido há muito tempo. Mais do que revisitar uma obra clássica da dramaturgia brasileira moderna, é uma reintegração de posse. As ferramentas de restituição do imaginário podem ser todas as disponíveis — e as ainda por inventar.