fragmentos e possíveis
crítica de “Das Dores – Suíte Strindberg”, da Epifania Companhia de Teatro
foto de Birgit Schrader
Após o terceiro sinal, as luzes se apagam e uma narração em off acolhe o público, no momento sempre repleto de expectativas onde a obra começará. É um lembrete para alguns – uma explicação para outros – do que se faz ali: se contam histórias, se apresentam vidas, suas dores, suas alegrias; seus ínfimos e infinitos.
É este terreno do compartilhamento de possíveis a partir de vivências particulares fragmentadas que povoará a encenação de “Das Dores – Suíte Strindberg”, da Epifania Companhia de Teatro, com direção e adaptação de Samir Signeu, a partir de cenas de cinco peças de August Strindberg. Três atrizes (Amanda Leones, Carla Dias e Luana Costa) se dividem, ora na narração, ora na interpretação dramática, nos papéis trazidos à cena. Trata-se de uma possibilidade de, ao mesmo tempo, historicizar a reflexão sobre o universo feminino, fazendo uso de peças escritas na virada do século XIX e também inserir tais questões em nosso contexto atual; um contemporâneo fragmentado, incerto, dúbio.
Luis Alberto de Abreu aponta em seu artigo “A personagem contemporânea: uma hipótese” o surgimento de um terceiro nível da representação feminina na obra de Henrik Ibsen: “a mulher que ultrapassou os limites da maternidade, foi além da trajetória amorosa e vai em busca de uma nova trajetória”. Strindberg radicaliza essa representação do feminino a partir de sua ótica naturalista presente de forma marcante em suas primeiras obras e também em seu posterior flerte com movimentos de vanguarda.
Abreu também aponta que uma matriz possível para a personagem contemporânea se faz presente em Kafka e Beckett, com seus protagonistas alienados de si próprios, desenraizados, cujas consciências fragmentadas não fornecem suporte para a ação. Mas que agem: “Todos os dias, em qualquer lugar do mundo, topamos com consciências fragmentadas, com seres perplexos que, no entanto, agem. Uma ação descontínua, sem objetivo, sem sentido e, como toda ação teatral, dramática, violenta”.
A escolha de Signeu pela fragmentação do texto strindberguiano, pela multiplicidade de discurso oferecido pela construção cênica parece caminhar em busca da compreensão destas possibilidade matriciais; ao mesmo tempo que faz uso da representação do feminino presente nas obras originais – a busca de uma nova trajetória – “Das Dores” não ignora a dificuldade de se repensar constantemente que trajetórias são de fato novas, quais são de fato possíveis e quais os conflitos decorrentes dessa busca.
A encenação se vale de elementos simples: cenário branco, duas cadeiras, ribaltas de led e iluminação sem grandes recortes. O centro da obra é o texto e a movimentação precisa construída para dar vazão à ele. É um espetáculo verborrágico por escolha, pela necessidade de tais reflexões serem postas sem barreiras. As três atrizes trazem na interpretação características muito distintas, o que, se por um lado potencializa essa radicalização dos possíveis femininos, por outro também pode deixar a composição precisa da cena em risco.
“Das Dores – Suíte Strindberg” é uma obra com pretensões na medida para a própria realização. O jogo cênico, com repetições, variações e dinâmica fluida, sustenta o intenso volume de texto, permitindo que a narrativa se desenvolva sem sobressaltos e ao mesmo tempo surpreendendo o público; por não haver uma escolha única de linguagem, a encenação se desenha de tal modo que, ainda que com eixo temático bem definido, o horizonte de expectativas de quem acompanha não se fecha em momento algum.