sobre terras que geram pôneis
crítica de “Fome.doc – ensaio sobre a necessidade e a liberdade”, do Coletivo Comum (antes Kiwi Companhia de Teatro)
Logo no início de “Fome.doc”, da Kiwi Companhia de Teatro, somos apresentados ao procedimento básico da encenação: os diversos elementos cênicos e camadas de leitura da obra são, concomitantemente, documento e metáfora. O roteiro de Fernando Kinas, que também assina a direção do espetáculo, organiza-se enquanto a aglutinação de múltiplas vozes – consonantes e dissonantes – em torno da temática da fome e seus mecanismos de ação, reverberação e, até mesmo, implementação.
Com uma trajetória consolidada dentro da pesquisa e construção de linguagem, a Kiwi apresenta uma peça situada absolutamente no campo do real – ainda que lidando com o campo do simbólico e fazendo uso de diferentes recursos cênicos a fim de aproximar o público de uma encenação densa. Com pouco mais de duas horas, “Fome.doc” apresenta variações sobre a forma de se olhar para um mesmo tema; dessa maneira, dá distintos tons e atmosferas ao longo de sua extensão. Essencialmente épica, a montagem balanceia sua seriedade e elaboração estética com recursos do cômico e do teatro popular: sem perder de vista a potência do discurso, textos e obras de outras linguagens artísticas se inserem na encenação não-linear, de eminente presença narrativa. São esquetes, músicas, poemas, obras literárias, provérbios, bonecos, vivências…
Fazendo uso destas diversas possibilidades, “Fome.doc” busca, nitidamente, defender uma tese. No entanto, não o faz através meramente de um embasamento teórico; à luz da cena, micro-histórias permitem que todo um sistema seja exposto. Não há teorias; há vidas e mortes e a fome. É um tratado didático e indigesto sobre o mal maior da miséria. Articulando a narração de fatos cuja crueza já efetiva uma comunicação direta com outros onde a elaboração poética da relação do que é dito com o tema abre espaço para a plateia se inserir, a obra não se limita ao levantamento documental – estamos, sim, no mundo; mas também estamos no teatro, onde a disputa se dá no campo do imaginário.
A escolha das vozes, muitas vezes citadas diretamente – como o discurso de Glauber Rocha sobre a estética da fome ou os escritos de Carolina Maria de Jesus – também potencializa a encenação: se grande parte das citações reafirma o discurso do espetáculo, a utilização de vozes dissonantes também sem grandes edições escancara o absurdo do sistema e do pensamento da classe dominante. Tal absurdo é, ainda, potencializado pelo excelente trabalho dos atores, Fernanda Azevedo e Renan Rovida. Azevedo, em uma interpretação absolutamente transparente, em momento algum consegue se isentar do que está sendo posto em cena. Assim como a própria organização, cênica e texual, de Kinas, que não deixa uma voz colonialista/imperialista sem alguma forma de resposta ou comentário. Trata-se de um trabalho de enorme responsabilidade, numa consonância política e artística, ética e estética.
Na recuperação documental da construção da fome humana, a Kiwi Companhia de Teatro nos mostra que a história talvez nunca deixe de se repetir enquanto tragédia para alguns. A farsa, talvez, seja relegada aos que, sentados em torno de mesas fartas, tomem decisões que afetarão o vazio de tantos estômagos. As ilhas Shetland estão por toda parte, não permitindo que seus pôneis almejem grandes cavalgadas.