a distante proximidade do amor
crítica de “Aproximando-se de A Fera na Selva”, dramaturgia de Marina Corazza e direção de Malú Bazan
foto de Lenise Pinheiro
“Você sabe do que se tratam os abraços invisíveis, não sabe? São abraços que prescindem de braços para serem realizados. Ou também podem ser abraços que nunca existiram – por exemplo aqueles dos casais já em final de amor nos aeroportos… Eles, na derradeira despedida, são incapazes de espalmar os dois corpos em paixão como sempre houvera sido. Esses casais me deixam triste, sabe? Eu prefiro continuar andando sozinha por aí a entender que uma relação pode vir a ser desse jeito. Desse jeito cheio de despedidas, cheio de não me toques, cheio de surpresas absolutamente previsíveis e silenciosas em relação ao amor.”
(trecho de ‘Bula’, de Paloma Franca Amorim. Texto publicado em “Eu preferia ter perdido um olho”; São Paulo: Alameda, 2017.)
Três camadas deslizam suavemente. Uma narrativa documental dos atores – com o didatismo necessário para situar os espectadores, localizando historicamente fatos, pessoas e obras – e duas relações dramáticas; cada uma com seu nível de ficcionalidade. “Aproximando-se de A Fera na Selva” carrega no próprio nome sua pretensão. Na dramaturgia de Marina Corazza, Gabriel Miziara e Helô Cintra Castilho se debruçam por tentativas – arriscadas – de tornar palpável o indizível.
Compreendendo esta como missão quase intrínseca às artes presenciais, a direção de Malú Bazán se atém aos elementos primordiais do teatro. Os figurinos de Mareu Nitzchke, em tons sóbrios, auxiliam na identificação dos planos – ao mesmo tempo que, por vezes, os deixam ambíguos; quase sobrepostos. Na concepção cênica de Bazán, cortinas parecem simultaneamente criar espaços de intimidade e de clausura. Repleta de recortes e dando vazão ao mundo exterior que se apresenta às personagens, a iluminação de Miló Martins pode ser vista como o elemento mais complexo da encenação.
A aparente simplicidade no uso dos demais recursos cênicos faz com que a interpretação de Miziara e Castilho salte aos olhos. São eles, presentes e precisos, que conduzem o público entre a narração e os personagens John Marcher e May Bartram, de “A Fera na Selva”, do autor britânico Henry James – cuja relação com Constance Fenimore Woolson, amiga e também escritora, completa o plano tríptico.
Neste sentido, pode surgir como curiosidade do espectador a relação dos próprios atores. O que a obra propõe, no entanto, é menos performática; o diálogo dos intérpretes – enquanto intérpretes – com o público se dá no lugar já citado da explicação e também em questionamentos e paralelos entre as relações humanas apresentadas e a própria arte do teatro. Na arte e no amor, há a intenção e há o visível.
Há o que acontece e há uma série de outros possíveis que se desenham. Buscando dissolver as fronteiras entre personagens e autores, relações afetivas reais e imaginadas se concretizam. A concretização, no entanto, parece ser sempre na ausência. Nesses “abraços invisíveis”, que prescindem de braços. Miziara e Castilho não se tocam em momento algum. Assim como não há consumação amorosa – ou nem mesmo a percepção do amor existente – entre Marcher e Bartram; ou como James e Woolson, que, ao buscar não se moldar pelas convenções e expectativas sociais, tentaram encontrar outros meios de se relacionar.
Com extrema sutileza, assumindo-se como aproximação, a obra talvez não arrebate, mas encanta com a construção de belas imagens e a tentativa de trazer o público para a reflexão sobre as muitas formas de se permitir afetar e ser afetado pelo outro. Uma convocação ao momento presente, ao instante, feita ao final do espetáculo, parece ter a capacidade de redimensionar e borrar de vez as diversas camadas, que por ora se estabeleciam, por ora se confundiam. Importante lembrança da potência da delicadeza – seja no teatro, seja no amor.