teatro

de como se nasce; das mortes que se vivem, das mortes que se escapam

crítica de “Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens”, do Coletivo Negro

foto de Leonardo Lima/Clix

Antes mesmo de “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens” efetivamente começar, o palco escuro, tomado pelos barracos da cenografia de Júlio Dojcsar, sutilmente iluminado somente por pequenos pontos vermelhos e azuis dos equipamentos da banda, já estabelece de alguma maneira o chão de onde partirá aquela história: parecem as luzes de vielas mal iluminadas de alguma periferia de mundo. Assim que o espetáculo se inicia, situa-se muito bem de onde se fala.

Em off, a voz de KL Jay apresenta a obra, anunciando os nomes de todos aqueles entrevistados para sua construção. Jé Oliveira, do Coletivo Negro, concebe, escreve, dirige e atua esta “peça-show”, costurando as histórias de diversos homens negros – junto à própria experiência enquanto tal – na busca pelos pontos que podem nortear o que é a descoberta desta identidade.

A ideia de uma peça-show escancara que tal descoberta também pressupõe uma pesquisa autoral da linguagem que melhor comporte este discurso. Com músicos em cena – e inserindo na banda a figura do DJ, fundamental não apenas dentro do contexto do hip-hop e da sampleagem presente na construção da obra, mas ainda mais considerando a forte conexão do espetáculo com os Racionais MC’s (a obra se coloca como tributária ao legado do grupo) – Jé torna-se um Mestre de Cerimônias que por vezes canta, por vezes conta, por vezes representa, por vezes interpreta… Apesar de, ainda no início da peça, anunciar que ali não haverá ilusão – por ser uma obra em diálogo com uma realidade concreta – não deixa de haver teatro; transitando entre o performativo e o épico, o discurso e a forma se comunicam diretamente com o público à todo instante.

O conceito de “lugar de fala”, tão em voga nas discussões contemporâneas sobre minorias, encontra em “Farinha com Açúcar” uma exemplificação prática nítida: aquela gama de referências e experiências de vida encontra reverberação muito mais visceral nos que a compartilharam em algum momento. Ainda que a potência do discurso seja visível à todas e todos, parece que há algo ali que não diz respeito aos que não partem daquelas vivências – ao invés da celebração da descoberta, da revelação do ser homem preto periférico, sobra um golpe no estômago sobre a realidade do oprimido, do assassinado, do relegado à margem da nossa sociedade. O momento do compartilhamento da farinha com açúcar é para alguns lembrança, mas para outros traz uma descoberta amarga; uma comunhão simbólica em uma plateia possui a carga de mais um golpe acerca da necessidade e das formas de se seguir vivo e bem.

Estruturada em dois atos – “Morrendo” e “Sendo” – Jé expõe primeiros as tantas mortes às quais foi – e é – necessário escapar e as outras tantas que se precisa viver para então, a partir da sobrevivência – até então – garantida, começar a se compreender quem se é. É neste momento da busca pela compreensão que surge, de forma definitiva, a influência dos Racionais MC’s; ainda na ideia do lugar de fala, para além de um lugar concreto – a periferia da zona sul de São Paulo – trata-se da construção de um imaginário que diz respeito à toda uma geração que buscava a representação de suas questões, de sua realidade, para, a partir da identificação com o outro, construir a própria identidade.

Na costura do espetáculo, aglutinando diversas vozes mas sem deixar de lado a autoralidade do artista, Jé Oliveira celebra a potência não apenas da descoberta de quem se é, mas de assumir e permanentemente construir e defender essa identidade frente à uma sociedade hostil. É sobre insistir em um (ou em uma forma de) estar no mundo que não é de um indivíduo, mas de uma geração.