arquipélago, dança, destaque

habitar no hoje o que tinha (e o que não tem mais)

crítica de Fantasias Brasileiras, da Pérfida Iguana. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Em 1953, dentro do escopo do preparo para as celebrações dos 400 anos de São Paulo, uma comissão municipal decide criar o primeiro grupo profissional de dança da cidade: o Balé IV Centenário nasce com grandes pretensões, orientado a tratar de “temas genuinamente brasileiros”, visto que, até então, “os balés produzidos apenas tratavam de temáticas européias e renascentistas” (em Portal MUD – O Ballet do IV Centenário). Para essa missão, foi contratado Aurel Milloss, coreógrafo húngaro. 

A escolha da Pérfida Iguana, polo de criação e pesquisa em dança, de nomear sua dança-exumação do Balé IV Centenário de Fantasias Brasileiras – para além de tratar-se de um dos balés dançados pelo grupo entre 1954 e 1955 – traz consigo uma fina ironia: houvera na ocasião um nítido descompasso entre as realidades das culturas populares retratadas e o referencial utilizado por Milloss e seus colaboradores nas criações. O húngaro aponta para três aspectos na lida com a arte brasileira, conforme entrevista dada à Folha da Noite, ed. do dia 10 de novembro de 1953: “1) Da mitologia indígena; 2) Da cristalização da influência afro-brasileira; e 3) Temas sociais nordestinos”.

Das 16 coreografias que compõem os quatro programas inaugurais do Balé IV Centenário, cinco são balés nacionais – o único deles não revisitado pela Pérfida Iguana em Fantasias Brasileiras é Uirapuru, de Villa-Lobos; a escolha parece justificada pelo fato de não ser uma das “criações absolutas” do grupo: trata-se de obra finalizada em 1934 e estreada em Buenos Aires no ano seguinte. Dos quatro apresentados, Lenda do amor impossível se enquadra no primeiro aspecto citado por Milloss; Fantasia Brasileira (composição de Souza Lima) e O Guarda-Chuva (Francisco Mignone) no segundo; A Cangaceira (Camargo Guarnieri), no terceiro.



Na organização das Fantasias Brasileiras, com concepção, textos e direção de Renan Marcondes, dois programas: Fantasia Brasileira seguida de Lenda do Amor Impossível; O Guarda-Chuva seguido de A Cangaceira. As danças públicas da Pérfida Iguana foram apresentadas nas ruas de São Paulo entre agosto e setembro de 2024. Trata-se de um trabalho que equilibra a dimensão da pesquisa realizada pelas pessoas artistas envolvidas no projeto com certa leveza e irreverência em suas apresentações. Toda a equipe – incluindo performers – veste roupas pretas com a inscrição “Comissão de Exumação do Balé IV Centenário (1953 – 1955)” e luvas azuis, parecidas às utilizadas pela Pérfida Iguana no processo de pesquisa, ao manusear os figurinos originais do acervo do Teatro Municipal. Um boné, sempre utilizado por uma das pessoas em cena, sinaliza o balé sendo apresentado, numa estrutura que parece sempre trazer a figura de uma primeira bailarina, um protagonismo comum às ordenações tradicionais de grupos deste tipo de dança.

Neste ato de exumação, o palco parece ser o primeiro cadáver: definido o local de apresentação, Carolina Callegaro, Everton Ferreira, Isis Andreatta e Raul Rachou começam a desenrolar o tapete que será o espaço cênico. Nele, um primeiro texto contextualiza o público presente – e passante – em torno do que foi o Balé IV Centenário, ao mesmo tempo que é também carta de intenções destas Fantasias Brasileiras: “NOSSA COMISSÃO BUSCA DESENTERRAR ESSAS DANÇAS E RETIRÁ-LAS DO ESQUECIMENTO. MAS TAMBÉM LEMBRAR QUE ELAS ESTÃO MESMO MORTAS”. 

Nisso, o duplo do título da obra, presente no programa distribuído durante as apresentações – onde Callegaro recria em seu corpo o mesmo desenho do programa original do Balé IV Centenário – começa sua operação: as Fantasias Brasileiras viram Fantasmas Brasileiros desde o início. E há nesse duplo também uma dupla operação, visto que, ainda que o gesto da Pérfida Iguana seja talvez centralmente exumar para exorcizar, há um respeito muito grande com as pessoas que fizeram parte dessa história. A luta contra o esquecimento está lá, desde na citação aos nomes de bailarinas até no movimento quase garcia-marqueziano de inserir em cada material da cena o nome da coisa (palco, lua, pedra, Heitor dos Prazeres, etc.).

Fantasias Brasileiras se envolve de uma grande carga conceitual na perspectiva da (re-)criação dos balés, considerando a composição friccionada no encontro dos corpos, técnicas, formações e expressividades de Callegaro, Ferreira, Andreatta e Rachou com o imaginário que se pode conceber destes balés a partir de seus figurinos ainda no acervo do Teatro Municipal, de fotos e críticas da época. Ao mesmo tempo, é totalmente propositiva em formas de produzir inteligibilidade para todas as pessoas que por ventura parem para observar.

Performance como crítica, crítica como performance: a obra de Marcondes insere a mediação em sua estrutura, desde a trilha entrecortada por textos narrados como que por locutores de rádio, situando o que se vê e também inserindo comentários à luz da contemporaneidade que observa essas fantasias brasileiras que talvez até para seu tempo estivessem recheadas de estereotipias e preconceitos. Também, durante a transição de balés de um mesmo programa – e até mesmo enquanto um está sendo apresentado – Marcondes e performers se aproximam de pessoas do público para trazer informações, imagens, contextos e até mesmo anedotas, como a história do clássico Dadinho ser um doce criado especialmente para as celebrações do IV Centenário.

Assim, no espaço cênico e na ágora formada em torno deste ato de riscar o chão – dialogando também com certa precariedade do próprio Balé IV Centenário, cuja estreia, que deveria acontecer no Teatro Municipal, acabou se dando em um palco improvisado no Ginásio do Pacaembu – compartilham-se as hipóteses, invenções, revivências e recriações em torno das Fantasias Brasileiras em 1954 e em 2024, entre a tradição e apontamentos possíveis. Milloss também é um dos fantasmas chamados à luz, na forma de um boneco manipulado por Matias Arce; sua participação é observar, fumar obsessivamente e segurar os quadros que ilustram os balés.

Falando sobre as quatro coreografias apresentadas pela Pérfida Iguana, Fantasia Brasileira traz Callegaro como que equilibrando em seu próprio corpo todo um carnaval; ao final desta primeira exumação, ela e este tanto que representa acaba como os ossos neste processo: colocados em um saco plástico. Lenda do Amor Impossível faz de Rachou um ser mítico indígena mas também o pescador apaixonado, enquanto seres da floresta movem o cenário e as fotografias dos bailarinos que dançaram originalmente o balé dancem como fantasmas bipartidos. 

No segundo programa, O Guarda-Chuva traz no corpo de Ferreira o frevo e a complexidade da dança popular, enfrentando (e dançando com) Heitor dos Prazeres, figurinista original. Na locução que acompanha a trilha, destaca-se a presença de black face, ou seja, pessoas brancas com o rosto pintado a fim de representar personagens negras, no balé original e o ato de exorcismo de tal recurso: ali, tinha; aqui, não vai ter – o que é evidenciado pelo protagonismo de um performer negro neste momento.  Também aqui, no jogo da mediação, é bonito e divertido ver Rachou interpretando o bonde, visto que uma de suas primeiras lembranças (o que é compartilhado pela equipe com o público) de experiência estética é ter visto, ainda criança, a cenografia original deste objeto – sua mãe, Ruth Rachou, fez parte do Balé IV Centenário. 

A Cangaceira fecha o segundo programa, quando Andreatta enfrenta olhares, clichês e opressões; na sola de seu tamanco, lê-se o nome de Edith Pudelko, bailarina que, ao casar, parou de dançar. O balé de Camargo Guarnieri enfrentou “rejeição completa (…) tanto pelo público quanto pela crítica e pelos próprios bailarinos que se sentiam desconfortáveis nas roupas criadas por Flávio de Carvalho e que, segundo eles, dificultavam a execução dos passos” (em Aurel von Milloss e o Ballet do IV Centenário). De algum modo, a força de Andreatta aqui contrapõe-se a uma certa leveza que habitava os três balés anteriores, como que para lembrar da seriedade e da necessidade deste ato de exumação, trazendo à tona o que está morto e o que permanece vivo daquilo elaborado na década de 1950 enquanto brasilidades.

No final de cada programa, Fantasias Brasileiras é também reverência. Flores pintadas de prata, algo de tosco e precário, como que dialogando com a distância entre pretensão e realização do Ballet IV Centenário. O legado deste acontecimento na cena da dança de São Paulo é inegável, mas é também fundamental olhar para seus caminhos e descaminhos, tanto de ordem organizacional – como que um projeto tão arrojado teve sua trajetória interrompida de forma tão súbita e precoce? – quanto de pensamento estético. Em 29 de outubro de 1953, a Folha da Noite estampava a manchete “Aurelio Milloss realizou um milagre: existe balé no Brasil”. Sobre qual Brasil se fundou o primeiro balé do país? Diante das Fantasias Brasileiras, uma cadeira para o público. Uma, apenas, e alguém ali em toda apresentação representa essa multitude. E são muitas as fantasias a se desfazer, são muitos os fantasmas a se exorcizar.

logo do projeto arquipélago

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

ficha técnica
FANTASIAS BRASILEIRAS

Um projeto do Pérfida Iguana
Concepção, textos e direção: Renan Marcondes
Assistência de direção: Carolina Callegaro
Criação e performance: Carolina Callegaro, Everton Ferreira, Isis Andreatta, Raul Rachou
Direção de arte, direção técnica e bonequeiro: Matias Arce
Assistência de direção de arte: Mateus Levy e e Paulina Olguin
Adereços vestíveis: Kitty O. Reis e San Pestana
Máscaras para “A Cangaceira”: Uberê Guelé
Trilha sonora original: Peri Pane e Otavio Ortega (gravada no Estúdio 100 Grilos)
Locução em off: Andréia Lara e Santtiago Locutor
Fotografia: Mariana Chama e Tetembua Dandara
Vídeos: Bruta Flor Filmes
Interlocução: Artur Kon e Clarissa Sacchelli
Produção executiva: Tati Mayumi
Coordenação de Produção: Tetembua Dandara
Agradecimento especial: Ana Teixeira e Neyde Rossi
Projeto contemplado pela 35ª edição da Lei de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo e pelo Edital de Chamamento Artístico Externo do Complexo Theatro Municipal de São Paulo