teatro

dos uber juntos às existências cindidas

crítica de “Experimento Dissenso”, AutoPeça com dramaturgia e direção de Lara Duarte apresentada na Satyrianas 2019

No projeto AutoPeças, com curadoria de Marici Salomão, artistas são convidados a construir cenas curtas que acontecem dentro de carros — parados ou em movimento. A dramaturgia situacional advinda disso propõe relações mais ou menos diretas com a circunstância de se passar em um automóvel.

Dentro do contexto da Satyrianas de 2019, que comemora 30 anos dos Satyros, Lara Duarte escreve e dirige Experimento Dissenso, além de estar em cena acompanhada do ator Matheus Rodrigues. O catito público, limitado pelo próprio suporte da ação — na apresentação assistida, apertadas quatro pessoas no banco de trás — acompanha Duarte e Rodrigues na cena que divide-se em três momentos; e três linguagens.

Antes mesmo de Dissenso começar oficialmente, os atores estão imbuídos da ação de lavar o carro em questão. O uso de bandeiras brasileiras como panos já carrega consigo um grande indício do teor crítico da proposta. Soma-se a isso o fato de estar chovendo intensamente na praça Roosevelt na quinta, 14.

A relação de um símbolo pátrio com um ato de lavagem de uma propriedade privada traz a tona não apenas uma relação material com os bens — e uma pseudo-ideologia nacionalista — mas essencialmente uma carga simbólica; ainda mais com o dado de inutilidade da ação frente à tempestade que deságua.

Duarte veste roupas decotadas e meia-arrastão; o figurino de Rodrigues sugere algo de BDSM — e traz uma comicidade ainda maior para este início de Dissenso. A sunga e as poucas tiras de couro se contrapõem, mais uma vez, à chuva. Ao entrar no carro, ele coloca uma camiseta e um ar de normalidade se instaura.

É a partir da entrada do público no banco de trás que a dramaturgia efetivamente se desenvolve. A proposta de Duarte joga com a autoficção, entre representação e performance, quando ela e Rodrigues apresentam-se para os espectadores de forma cruzada. Dados biográficos específicos se explicitam a partir das escolhas da dramaturga e diretora.

Duarte, sendo Matheus, versa sobre raça e classe — além de orientação sexual. Rodrigues, sendo Lara, aponta também para raça e expectativas que correlacionam aparência com poder aquisitivo. Ele, interpretado por ela, é negro, gay e motorista de Uber. Ela, interpretado por ele, é branca cuja origem soteropolitana é constantemente questionada.

O motorista de Uber fala sobre a liberdade que a branquitude crê que possui para invadir espaços pessoais. A usuária do Uber Juntos sente-se simultaneamente empoderada por transar com um passageiro com quem compartilhava uma corrida e temendo pela própria vida a partir da rota de sua viagem.

Além destas dicotomias que se apresentam, este momento central de Dissenso aponta para o que talvez se convenha chamar de idiossincrasias das personagens-pessoas. O desejo de assassinar ou torturar políticos autoritários e fascistas, por um lado; e um certo tesão, por outro, da lida com armas e munições.

É compreendendo estas tensões que se apresentam que o momento final potencializa-se. Assumindo efetivamente personagens — “agora vamos ser outras coisas”, dizem os atores — uma discussão típica de nossa polarização se estabelece. Para além do óbvio, e levando em consideração o que foi dito anteriormente, uma complexidade emerge da briga de casal — com a filha no banco de trás, recurso que permite à Duarte falar diretamente com o público.

O homem progressista resvala em atitudes machistas — pode-se falar em mansplainning e incorrer na leitura, já típica, do chamado esquerdomacho — enquanto a mulher, acusada de fascista, ampara-se em argumentos armamentistas sob um pensamento de autodefesa, principalmente ao dirigir-se à filha do casal.

A briga encerra-se em rupturas. Ele sai do carro; ela, pouco depois, também. Cada um com suas convicções, correm para lados opostos e deixam o público suspenso, aos poucos compreendendo o final. É como se fosse evidenciado o contraste desta sociedade que tanto busca compartilhar — até viagens em aplicativos — enquanto se polariza e pouco efetivamente se discute. Em voltas para casa depois de jantares em família, ninguém olha para si próprio antes de apontar dedos para o próximo.