circunstâncias e lacunas; fissurar o (melo)drama
crítica de O Exercício das Crianças, dramaturgia de Bruno Cavalcanti, direção de Noemi Marinho e atuação de Nicole Cordery e Fernanda Viacava. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Carla regressa à casa familiar depois de quinze anos. Marta esteve lá por todo o tempo. Com a morte do pai e a mãe já há tempos falecida, as irmãs se reencontram agora órfãs. Carla anseia por ver as crianças, Marta hesita para aceitar esse encontro. As crianças nunca aparecem. Onde estão? Como se chamam, mesmo? Suas idades? Quem é o pai delas? As irmãs conversam, revisitam outros tempos e acontecimentos; personagens se desenvolvem mais complicadas que à primeira vista. Entre uma insistente goteira e cafés com duas gotas de adoçante, das coisas guardadas nas gavetas de armários e da memória emergem violências passadas e traumas presentes. Esse desenho, assim como a sinopse de O Exercício das Crianças, dramaturgia de Bruno Cavalcanti, sugere uma construção melodramática do enredo, com o escalamento de tensões a partir de revelações que – ainda que factíveis em nossa sociedade – beiram algo de absurdo.
O texto foi escrito antes da pandemia de Covid-19, tendo uma versão encenada de modo online, com o título E as crianças?, dentro do projeto REDE DE LEITURAS, em 2020. Já com direção de Noemi Marinho (que assina também o dramaturgismo em O Exercício das Crianças), trazia a limitação comum às tantas obras produzidas no período: o enquadramento das câmeras, que mostravam apenas o rosto de Nicole Cordery (Carla) e Fernanda Viacava (Marta), fazendo de suas expressões faciais e movimentos de cabeça as únicas movimentações possíveis na construção das personagens e de suas relações.
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Apresentar esse contexto e essa trajetória é relevante para refletir em torno de O Exercício das Crianças, pois há algo de singular em como a obra viabilizou sua existência – de modo que parece pertinente abordar a relação que se constitui entre os modos de produção e os modos de criação. Ou seja, como contextos, circunstâncias e desejos se alinham e desalinham na direção da elaboração artística do trabalho, sua pesquisa de linguagem, a estética que se propõe. Primeiro, a pandemia: o virtual se impõe diante do fechamento de espaços físicos; uma articulação (a já citada REDE DE LEITURAS), capitaneada por Thiago Albanese e Marcello Airoldi, surge como possibilidade de experimentação. Nisso, implicam-se as limitações supracitadas. Anos depois, no levantar da obra, limitações são tornadas escolhas de Marinho, percebidas na composição minimalista e precisa do gestual de Cordery e Viacava.
Também, no movimento desejante de fazer-acontecer, a coletividade em torno do projeto propõe a ideia de um teatro na planta, uma menção divertida ao fato de ser prática comum a aquisição de imóveis antes de sua construção, onde a pré-venda de ingressos arcaria com os custos de produção, que não conta com nenhuma fonte de financiamento pública ou privada para além do “investimento” do próprio público. Mais uma vez, as circunstâncias da realização trazem consigo fatores limitantes: enquanto não seria viável pautar um teatro de grandes dimensões com esses recursos, realizar parcerias com espaços alternativos traria um teto de lotação e, por consequência, captação.
Em cartaz no Espaço de Provocação Cultural, na Vila Romana, O Exercício das Crianças segue e seguirá se apresentando enquanto houver público, uma iniciativa bonita e corajosa, uma busca de outros modos de construir algum equilíbrio e dignidade no fazer teatral independente. Para além deste, entre os tantos contextos sendo citados no presente texto, interessa observar como tudo que circunda o (um?) processo criativo atravessa-o de algum modo.
No release para a imprensa, Cavalcanti aponta que “antes seria uma obra bastante convencional, um drama familiar clássico”; com a passagem do tempo e as circunstâncias que se colocaram, “as coisas mudaram, Noemi, Nicole e Fernanda subvertem essa ideia para trazer uma outra, de mais intimidade com o público. Assim, a peça cresce muito”. A diretora e dramaturgista, no mesmo material, enuncia suas intenções: “concentrar o máximo de teatro no mínimo essencial até voltarmos quase ao início de tudo: um ser humano diante de outro”. São afirmações que podem ou não estar diretamente conectadas ao tanto que aconteceu desde a primeira versão do texto, de 2019, e às escolhas de viabilização do trabalho que está agora nos palcos, mas não soa absurdo pensar que, fosse outro o momento, fossem outras as condições, O Exercício das Crianças seria outro espetáculo.
É evidente que à crítica – e ao público! – convém olhar para o espetáculo que existe e as implicações destes contextos nessa existência, suas fricções, circunstâncias e lacunas. No início de O Exercício das Crianças, Cordery e Viacava se aquecem no palco. A voz em off de Marinho dá os tradicionais avisos sobre celulares, mas também localiza e provoca a plateia: a ideia da obra é “testar limites” do teatro. Mais que provocação, talvez seja um convite para a observação e presença atenta – quais são esses limites e como eles estão sendo tensionados?
Pois é comum encontrar esse ímpeto de certo modo transgressivo na cena experimental paulistana, repleta de textos pós-dramáticos, teatros do real, cenas políticas onde a forma épica se encontra com o sujeito do discurso, a aposta na performatividade, enfim: são diversas as linguagens, os conceitos e as palavras para descrevê-los. Em O Exercício das Crianças, ainda que haja um reposicionamento na relação que se constrói entre as personagens – inclusive em momentos que sugerem dissociações e despersonalizações, com diálogos desconexos, repetições, inversão de textos entre as duas atrizes – o investimento parece todo na ordem da representação.
Nenhum movimento de luz, nenhuma trilha sonora, o cenário é a caixa preta, o figurino é quase uma roupa de ensaio (ainda que Viacava utilize uma calça que indique mais formalidade do que Cordery, sugestão condizente com as personagens), duas atrizes, as palavras do texto, uma gestualidade precisa, uma movimentação mínima, lances de composição extremamente simples.
Conforme Marinho aponta, é uma proposta de voltar quase ao início de tudo. Desse modo, O Exercício das Crianças traz em sua estrutura – tanto dramatúrgica quanto da encenação – algo de antigo, já muito visto, ao mesmo tempo em que ecoa referências (inspirações?) de vanguardas do século XX e se coloca, de algum modo, inserido em nossa “tradição contemporânea”. Lá está o melodrama, fissurado, repleto de lacunas que se dão a ver num descompasso entre o que se escuta e o que se vê. A constrição do movimento das atrizes faz com que cada gesto torne-se uma ação condensada, focando a atenção do público a cada instante do tempo e a cada centímetro do espaço. Nas falas, algo de uma métrica, sentenças onde a intenção e o ritmo parecem igualmente pensadas. O som da goteira, onomatopeico, fortalece a sensação da cadência de cada cena ter sido levada em consideração.
Na recorrência da goteira, um dispositivo e umas tantas metáforas. O barulho que Cordery e Viacava fazem com a boca é utilizado como um recurso cênico: as irmãs sincronizam-se e acalmam-se na pulsação da água que infiltra pelo telhado, evocando o gesto sonoro em momentos de crescente de tensão e de conflitos entre elas e internos de cada uma. Olhar para a goteira e não fazer nada pode ser lido como espécie de materialização de problemas percebidos e nunca efetivamente encarados. Uma gota que insiste em invadir a casa: rachaduras na forma dramática realista, por onde o espectador apenas observava a cena pelo buraco da fechadura da sala burguesa; O Exercício das Crianças parece uma tentativa de inundar, transbordar, na insistência possível do que se pode fazer de uma fresta, enxugando os recursos cênicos até o osso.
Refletindo enquanto sigo escrevendo, é curioso notar que para além da apresentação dada no primeiro parágrafo, o texto aborda muito pouco o enredo de O Exercício das Crianças, que evidentemente pode ser muito mais relevante aos olhos de outras pessoas que assistam ao trabalho. Penso que isso se dá porque na busca por essa síntese, pelo mínimo essencial, minha atenção foi particularmente capturada pela complexidade que há no simples e pelo investimento deferente à representação dramática, ainda que fissurada, lacunar, permeada por tanto que se pode observar dali. Também é curioso que tenha passado pela minha mente a imagem de como poderia ser o título em inglês do trabalho – uma língua que me desafia e muitas vezes me desagrada na escrita – e sua pertinência no todo do jogo que se propõe: Children’s Play. Sim, play não se traduz como exercício, mas a multiplicidade de sentidos dentro dessa palavra parece agregar a esse pêndulo entre menos e mais, entre as formas do passado e do presente que coexistem, com um certo grau de tensão, na obra: um brincar, um jogar, uma peça de teatro.
[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]
ficha técnica
O EXERCÍCIO DAS CRIANÇAS
Texto: Bruno Cavalcanti
Direção e Dramaturgismo: Noemi Marinho
Elenco: Fernanda Viacava e Nicole Cordery
Assistência de Direção: Tati Marinho
Produção Executiva: Taís Somaio (Valentina Produções)
serviço
Data: 15 de janeiro a 30 de abril 2025 (quartas-feiras)
Horário: 20h
Local: Espaço de Provocação Cultural – São Paulo (SP)
Endereço: Rua Bento de Abreu, 151, Vila Romana, região oeste
Preço do ingresso: R$ 50,00 (cinquenta reais – preço único)
Ingressos: https://www.sympla.com.br/evento/exercicio-das-criancas/2776531