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um teatro negro do teatro do mundo

crítica de Eu sou um Hamlet, de Fernando Philbert (direção e adaptação), Jonathan Raymundo (assistência de direção e adaptação) e Rodrigo França (atuação e adaptação). o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“Sempre existirão tantos Hamlets quanto existem atores, diretores, espectadores, leitores, críticos.” (Harold Bloom em Shakespeare e a invenção do humano, tradução nossa)

“Hamlet é como uma esponja. A menos que seja estilizado ou representado como uma antiguidade, ele absorve imediatamente todos os problemas de nosso tempo.” (Jan Kott em Shakespeare nosso contemporâneo, trad. de Paulo Neves)

Hamlet é muito. Em seu seminal trabalho Shakespeare e a invenção do humano, o crítico literário estadunidense Harold Bloom afirma que “Hamlet vem depois de Shakespeare, e ainda ninguém conseguiu ser pós-shakespeariano” (tradução nossa). Quatro séculos depois da primeira publicação da tragédia do príncipe da Dinamarca, incontáveis análises, interpretações, releituras, desconstruções já foram feitas, com mais ou menos sucesso, maior ou menor impacto. Algumas buscando confrontar a posição de “cânone universal”, defendida por Bloom, a partir de perspectivas decoloniais, outras atualizando ou adaptando a narrativa para o contemporâneo. 

Em Eu sou um Hamlet, de Rodrigo França, Fernando Philbert e Jonathan Raymundo (respectivamente ator, diretor e assistente de direção; o trio assina a adaptação da dramaturgia), o artigo indefinido no título é um primeiro indício dos caminhos da encenação. Antes mesmo do público presenciar as primeiras palavras de Hamlet, de Shakespeare, a obra é imediatamente localizada no aqui-agora por meio das notícias em off, uma sequência que em poucos segundos versa sobre questões tão diferentes quanto urgentes do mundo de hoje. França se dirige diretamente à plateia; essa espécie de prólogo é interrompida abruptamente assim que o ator evoca a possibilidade do “entendimento”.



Desde o início, a trilha sonora de Dani Nega surge como camada importante da encenação. Ruído e harmonia desenham-se quase como que verso e prosa na escrita shakespeariana, acompanhando os estados deste um-Hamlet França e alinhando os tantos elementos de Eu sou um Hamlet na direção de uma obra que parece tomar Hamlet como base para então construir, em samples, o discurso pretendido.

Eu sou um Hamlet é um Hamlet e o tanto que já se falou de Hamlet. É sobre o que se fez, se faz e pode ser feito com a personagem visto que, como aponta Bloom, não há um Hamlet ‘real’ assim como não há um Shakespeare ‘real’: “o personagem, como o escritor, é um espelho d’água, um grande espelho onde devemos nos ver”. Na obra de França, Philbert e Raymundo, o reflexo que se vê no espelho é o de um homem negro. Não se trata simplesmente de escalar um elenco negro e incorporar outras culturas à produção – algo já feito inclusive pela própria Royal Shakespeare Company em 2016 (!), com Paapa Essiedu interpretando o príncipe dinamarquês, com figurinos de inspiração africana e ritmos de tradição iorubá, um tremendo sucesso da companhia – mas sim operar um deslocamento da “invenção do humano” shakespeariano para questões que talvez não possam ser vistas como universais, mesmo em níveis subjetivos. Talvez, porque como diz Denise Ferreira da Silva na introdução de Homo modernus: Para uma ideia global de raça, as metanarrativas do sujeito pareciam não ter qualquer relevância para as batalhas no meu canto do globo”.

Por outro lado, Eu sou um Hamlet demonstra grande deferência ao sujeito de Hamlet, alinhando-se à proposta de Jan Kott para a compreensão moderna da obra, em que Hamlet é o drama das situações impostas”. Kott aponta que mais do que saber quem é Hamlet, Ofélia ou Laerte, é importante olhar para qual é o roteiro: “O mecanismo da história, o destino, a condição humana? Sem dúvida, qualquer um dos três; depende da maneira como quisermos compreender Hamlet.

Em que pese a diversidade das tragédias contemporâneas anunciadas pelas notícias, o alinhavar deste um-Hamlet é o de um homem diante da condição dos subalternizados do mundo, tendo o Racial como marcador central do que se desenrola. Eu sou um Hamlet, na construção do Theatrum Mundi, propõe um teatro negro do teatro do mundo. Bloom afirma que em certo momento do texto de Shakespeare, “(…) reconhecemos Hamlet como um de nós, de algum modo entregue a um papel em uma peça, na peça errada”. É diante desta imposição que França, em cena, está continuamente em uma ação teatral – enquanto ator, enquanto um-Hamlet, enquanto Hamlet – e é dentro da teatralidade que se reflete a realidade do negro no mundo. O palco é um palco; a cenografia de Natália Lana dialoga diretamente com a iluminação de Pedro Carneiro, fazendo de refletores um cenário-cemitério, reafirmação constante da teatralidade do teatro do teatro do mundo.

A pergunta em Eu sou um Hamlet não é “e se Hamlet fosse negro?”, mas, talvez, “quem sou Hamlet?”, enunciada por um homem negro – cujo “drama das situações impostas” é o próprio tecido de uma sociedade estruturalmente racista. E assim como os de Hamlet, os desejos, ideais e aspirações estão, conforme aponta Bloom, “quase que absurdamente descolados do ambiente rançoso” do Brasil, nossa Elsinore. Ainda, conforme Kott, “Hamlet aceita essa situação, mas ao mesmo tempo se revolta contra ela. Aceita o papel, mas ele próprio é exterior ao papel. Está além e acima dele”. 

Na encenação de Philbert, a situação é também de algum modo exterior: é o conhecimento prévio do público da trajetória de Hamlet e da realidade que nos circunda; ela está quase ausente no desenrolar de Eu sou um Hamlet enquanto sucessão de acontecimentos. É como se França, no que se convencionou chamar de tour de force, estivesse continuamente dando a ver seus pensamentos, sua subjetividade, a hesitação e a consciência desse um-Hamlet.

As pontes construídas entre a dramaturgia de Shakespeare e o discurso crítico da obra se dão no processo de sampleamento presente em texto, trilha e offs. Brecht, Nietzsche, Martin Luther King Jr, Marielle Franco, Elza Soares: Eu sou um Hamlet amplifica um devir-ser em toda a sua complexidade, uma reivindicação de sobrevivência, um grito coletivizante de vida.

Tais inserções dramatúrgicas, nas idas e vindas entre Hamlet e um-Hamlet, no fluxo que não-será-interrompido – entre delírio, ter-um-sonho, razão e entendimento; entre personagem, um-personagem, o ator, um homem negro – oscilam entre discursos diretos cristalinamente compreendidos, momentos simbólicos e uma fragmentação por vezes enigmática. Há, assim, o risco de certo hermetismo e, raras vezes, acabam por incorrer em um certo esvaziamento na utilização de frases de efeito, que podem diminuir o impacto das tantas questões (muitas vezes retóricas) sendo levantadas.

Tanto Bloom como Kott apontam que a vingança não é o que define Hamlet; o primeiro afirma que “o Hamlet triunfal é o drama cosmológico do destino do homem, e ele apenas mascara esse impulso essencial como vingança.”, o segundo, diz que a situação do assassinato “não define Hamlet, pelo menos não o define ao ponto de suprimir toda ambiguidade”. Eu sou um Hamlet faz da figura do príncipe uma representação, que pode até soar estranha à primeira vista, dos oprimidos, marginalizados pela sociedade. Pois se a invenção do humano se deu em Shakespeare, antes do bardo já se havia inventado a sub-humanidade. Quem tem o direito de se questionar em torno de “ser ou não ser”?

Neste teatro negro do teatro do teatro do mundo, onde ruínas e cemitérios são um passado que se insiste presente, o Fantasma do pai é a evocação da ancestralidade; os figurinos de Rodrigo Barros fazem deste um-Hamlet uma realeza africana e a transcendência de Eu sou um Hamlet não é mais exatamente secular: permeando toda a encenação e notadamente em seu final, elementos de religiões de matriz africana se fazem presentes; ao tirar o manto da personagem, França veste suas guias e a mão que antes segurou um punhal agora empunha um búzio. Um-Hamlet não morre, aqui; entrega o insolucionável da condição humana ao (incerto) destino.

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serviço
EU SOU UM HAMLET

Temporada: 9 de janeiro a 22 de fevereiro de 2025
Quinta a sábado, às 20h; Feriado (25/01), às 18h.
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 60 minutos
Sesc Pinheiros - Auditório
R. Pais Leme, 195 - Pinheiros, São Paulo - SP, 05424-150
Telefone: (11) 3095-9400
Ingressos: R$50 (inteira) / R$25 (meia entrada) / R$15 (credencial plena)

ficha técnica
EU SOU UM HAMLET

Dramaturgia: William Shakespeare Tradução: Aderbal Freire-Filho, Barbara Harrington e Wagner Moura Adaptação: Fernando Philbert, Jonathan Raymundo e Rodrigo França Direção: Fernando Philbert Elenco: Rodrigo França Assistente de Direção: Jonathan Raymundo Dramaturgia Sonora e Trilha Original: Dani Nega Cenografia: Natália Lana Assistente de Cenografia: Alessandra Rodrigues Cenotécnico: André Salles Iluminação: Pedro Carneiro Assistente de Iluminação: Thaysa Carvalho e Jéssica Barros Operadora de Iluminação: Dara Duarte Operador de Som: André Papi Figurino: Rodrigo Barros Assistente de Figurino: Layza Dias Preparação de Elenco: Kennedy Lima Coreografia: Valéria Monã Pesquisa Yorubá: Gui Leal Preparação Física: Bia Black Camareira: Cacierly Tiengo Assessoria de Imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério Relações Públicas: Anderson Oliveira Fotos: Márcio Farias Fotos de Cena: Nil Caniné Videomaker: Jonatas Marques Direção de Produção: Gabrielle Araújo [Caboclas Produções] Produção Executiva: Deborah Oliveira Produtores Associados: Fernando Philbert e Rodrigo França Realização: Diverso Cultura e Desenvolvimento, Caboclas Produções, Mar Aberto Produções Artísticas e Orí Conhecimentos