arquipélago, destaque, performance, teatro

do que se disse. do que se diz. do que talvez. do que foi. do que foi. do que é

crítica a partir da abertura de processo de Eu não escorreguei, de Aline Alves (SP). este texto faz parte da cobertura especial da Mostra Solo Mulheres 2024, do Teatro de Contêiner, com curadoria de Tati Caltabiano; amilton de azevedo é uma das pessoas realizando o acompanhamento crítico do festival. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica.

Um acontecido com a filha de uma conhecida lá em São Paulo. Um áudio com todos os indícios de mensagem de WhatsApp. Uma partilha do que se soube, do que se ouviu dizer. Eu não escorreguei começa com a realidade, lacunar, invadindo a cena. Aline Alves vai aos poucos se distanciando do que foi contado na direção daquilo que aconteceu. No começo, o público até se diverte. A mensagem não explicita exatamente o ocorrido, e Alves interpreta o jeito de dizer daquela narradora.

A ideia de narradores não confiáveis é bem comum nas formas artísticas. Aqui, não é exatamente sobre isso: a abertura de processo de Eu não escorreguei na Mostra Solo Mulheres 2024 parece fazer uso deste disparador outro, desta voz externa ao fato, como recurso formal para a composição de sua obra. A repetição vai aos poucos se distanciando daquilo originalmente enunciado, assim como sua interpretação. Sutilmente, Alves passa a falar por si mesma neste dispositivo constitutivo da cena. A impressão inicial é que todo o trabalho será estruturado nessa contínua soma e reorganização do que se disse, do que se diz, do que talvez, caminhando em diálogo com o público na direção do que foi, do que é.


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Ao mesmo tempo, o abandono desta repetição não se dá sem resquícios – enquanto Alves, por exemplo, diz, desdiz, rediz a quantidade de bebidas tomadas, lá está algo deste distanciar-se e aproximar-se de si própria. Eu não escorreguei parte de um caso de importunação sexual sofrida pela artista – “no dia das mulheres, na pista de dança e ao som de Tim Maia”, como afirma a sinopse – e os desdobramentos, práticos e subjetivos, na lida com o ocorrido. Alves se implica em algum grau de incerteza no próprio relato, desviando de uma narrativa linear, documental, inserindo assim na cena o que parece(u) ser seu próprio processo interno diante do insólito da violência.

E então o público acompanha do áudio ao relato ao processo, ao contraditório, aos diálogos com a construção da narrativa a ser apresentada junto à advogada, a uma espécie de investigação curiosa sobre o sujeito agressor. Tudo vai se montando, desde o diz-que-me-diz da voz que contou em off até os desdobramentos daquela noite, das permanências, dos movimentos rituais e dos atos de lavagem; Eu não escorreguei é estruturado neste jogo entre o que se vive, o que se disse sobre o que se viveu, as sensações desencadeadas e as visões lançadas sobre Alves – e também, talvez, por ela mesma.

Do lugar do acontecimento aos outros lugares onde ele permaneceu nela, banhos e tribunais. Conselhos jurídicos mais atentos às aparências, algo de um desejo de uma troca de olhares para o confronto, do que aconteceu e do que não aconteceu. Um e-mail que, enviado ou não, foi escrito e ali é dito. Limpar-se ao som da banheira do Gugu e um imaginário, uma construção histórica de permissões e violências, e tudo aquilo mais que desliza.

Primeiro, Eu não escorreguei é muito de texto. Depois, o corpo começa a surgir. O relato de uma violência e as experiências de um corpo importunado, violado. Enquanto abertura de processo, é interessante pensar sobre a organização da cena e seus movimentos – desde olhar para o dispositivo da repetição e compreender a possibilidade de uma (ainda) maior insistência neste jogo de lacunas e suposições até considerar por onde seguir agora, enquanto (infelizmente ainda) houver necessidade e fazer sentido dar a ver o vivido, do que se disse, do que foi, do que é.

logo do projeto arquipélago
ficha técnica
EU NÃO ESCORREGUEI

Criação e atuação: Aline Alves
Sonoplastia e Iluminação: Cic Morais
Fotografia: Michel Igielka
Vídeo: Louie Rodrigues
Produção: Júlia Iwanaga
Preparação Corporal: Andrus Santana
Provocação Cênica: Mameh Farah e Karina Acosta
Cantora: Bia Macedo (Sabiá)
Agradecimentos: Teatro de Contêiner
Desagradecimentos: Importunador Sexual

ficha técnica
MOSTRA SOLO MULHERES 2024

Teatro de Contêiner (idealização e produção), Tati Caltabiano (curadoria), Léo Akio (direção de arte, coordenação de comunicação e design), Pombo Correio (assessoria de imprensa), Marcos Felipe (comercial e coordenação de produção), Virginia Iglesias (produção administrativa e financeira), Gustavo Sana (produção executiva e consultoria de projetos), Paloma Dantas (coordenação técnica), Pedro Augusto (coordenação técnica), Camila Bueno (técnica), Lucas Bêda (produção executiva), Sandra Modesto (produção executiva), Sônia Cariri (produção, receptivo, camarim e bilheteria), Thamiris Cariri (lanchonete), Danee Amorim (produção e receptivo), Paula Silva (produção, receptivo e serviços gerais), Isabelle Iglesias (produção e rede social), Nara Oliveira (coordenação de libras), amilton de azevedo - ruína acesa (acompanhamento crítico), Lena - cítrica (acompanhamento crítico).