teatro

da impossibilidade do arranque (ou o sufocar da realidade)

crítica de “Estado de Emergência”, AutoPeça com dramaturgia de Afonso Jr. e Sandra Vilchez apresentada na Satyrianas 2019.

As janelas do carro onde se passa Estado de Emergência estão cobertas com páginas de jornais. Ainda que haja exagero, o tom alarmista das notícias não as afasta da realidade brasileira de 2019. Tem sido impossível ter um dia de paz em nossos tempos. Com a velocidade da informação e o verdadeiro bombardeamento de imagens, dados e absurdos que qualquer um com um smartphone recebe continuamente, muitas vezes parece faltar mesmo o ar para respirarmos e seguirmos em frente.

Apresentada na Satyrianas dentro do projeto AutoPeças, com curadoria de Marici Salomão, a cena escrita por Afonso Jr. e Sandra Vilchez — uma sintética e potente dramaturgia — versa sobre nossa contemporaneidade de forma claustrofóbica. Sob a direção de Carolina Fabri, Vilchez e Arinha Rocha transitam entre um ímpeto eufórico e uma angústia paralisante dentro deste sufocar da realidade.

Com as janelas vedadas (ainda que levemente abertas para um mínimo de circulação de ar), quatro espectadores espremidos no banco de trás mais as duas atrizes na frente se vêem imóveis. A sinopse de Estado de Emergência sintetiza bem a proposta cênica: “Há sempre a expectativa do arranque quando se vê duas pessoas sentadas num carro.”

A expectativa do arranque, da fuga, do movimento, do seguir caminhando. E a sua impossibilidade frente às manchetes, ao medo, à violência. Além disso, não basta arrancar — necessário também é saber para onde ir. No mapa dentro do porta-luvas, um destino em branco. O que poderia ser lido como uma infinitude de possíveis torna-se, dentro dessa atmosfera de desespero, mais uma dificuldade; mais uma paralisia.

Nas tentativas das personagens, trocas de lugares e de papeis — “se eu estou no banco do passageiro, preciso usar seu chapéu!” — nada resolvem de fato a questão. Para respirar, cartões com paisagens ocultando as terríveis notícias. Parece mesmo impossível ver o mundo além do que se concebeu dele; de suas violências estruturais e institucionais.

Encontrar paraísos soa mesmo uma fuga tola do tanto que aflige o mundo. Carros fechados e seus ares-condicionados, altos muros isolando casas: quem pode bancar a própria segurança e quem são os alvos atingidos? É melhor ficar estacionada ou em movimento? Dentro ou fora de seu veículo e de suas propriedades?

Vilchez e Rocha aproveitam bem a intimidade construída pela proximidade; mesmo quando as atrizes não se dirigem diretamente aos espectadores, respiramos juntos — ou, ainda, sufocamo-nos todas e todos. Ao falarem com o público, a lembrança (ainda que não nomeada) de Ághata Félix, a garota de 8 anos baleada dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, parece indicar o disparador para a proposta cênica: será possível, frente a tudo isso, seguir o ímpeto de ligar o carro e dirigir para algum-qualquer lugar? Ou a impossibilidade do arranque também versa sobre a necessidade de considerar quem a realidade sufoca com maior violência? Estado de Emergência não pretende solucionar tais problemáticas; ao final, sobrepõem-se segurança e risco, covardia e coragem, fuga e enfrentamento.