teatro

das cores que não vemos em nossas escuridões

crítica de “Eigengrau – No escuro”, da Delicatessen Teatral, com direção de Nelson Baskerville

Intrinsecamente cinza. É essa a tradução literal da palavra de origem germânica que dá nome ao espetáculo “Eigengrau – No escuro”. O termo é utilizado para se referir à cor vista pelos olhos na completa escuridão. Nela, não há contraste – nossa escuridão é, por isso, cinza. Intrinsecamente cinza.

Na dramaturgia de Penelope Skinner, fronteiras acinzentadas entre o que se acredita e o que se faz a partir disso são expostas no conflito de quatro figuras. A apresentação destas personagens, no entanto, se dá através de pinceladas bem mais definidas e de cores fortes. A grosso modo, são eles: o bem-sucedido playboy machista Marcos (Daniel Tavares), a romântica ingênua e mística Rosa (Renata Calmon), a radical feminista Carol (Andrea Dupré) e o imaturo acomodado e enlutado Tomás Gordo (Tiago Real).

Nelson Baskerville, que dirige a encenação, parece não ignorar a estereotipia da construção de tais personagens dada pelo texto. Pelo contrário – ao jogar com elas, faz com que os atores trabalhem em diferentes registros de interpretação. Calmon e Real apresentam uma grande dramaticidade na construção de Rosa e Tomás – a primeira, com mais intensidade – enquanto Dupré e Tavares, sendo Carol e Marcos mais racionais, buscam uma precisão mais objetiva nos gestos e entonações.

O desenvolvimento da dramaturgia de Skinner é essencialmente dramático, com a grande maioria das cenas se dando na relação de duas personagens. O enredo é quase novelesco: Marcos transa com Rosa. Rosa mora com Carol. Marcos se interessa por Carol. Rosa está perdidamente – e ingenuamente – apaixonada por Marcos. Tomás se apaixona por Rosa. Carol transa com Marcos. O desenlace da situação chega a beirar o absurdo; é quase pitoresco, e o estranhamento deixado pela cena final faz com que se questione aonde a dramaturga pretendia chegar.

Ainda assim, para além desta estrutura “romântica” básica, parece haver algo de mais profundo nos conflitos trazidos por cada personagem. Cria-se certa complexidade dentro do estereótipo. Com mais ou menos potência, cada um traz consigo crenças muito fortes – seja na ideologia feminista ou na misticidade do destino, para citar os exemplos das personagens femininas – e a forma com a qual agem dentro da teia de relações construídas pelos conflitos os colocam frente às consequências e problemáticas de certezas construídas. Vale apontar, no entanto, que isso parece não se consolidar enquanto constante nas personagens – o desenvolvimento de Tomás Gordo e seu final “feliz” soa um pouco confuso nesse sentido; e o conflito entre o político e o privado de Carol parece já um pouco datado.

As escolhas da encenação de Baskerville são interessantes. O espetáculo mantém a linha dramática como central, mas cria uma série de interferências épicas, principalmente na forma de falas no microfone junto a projeções e em canções. O microfone está instalado dentro do que remete ser uma cabine telefônica inglesa. Como se a comunicação estivesse restrita apenas diretamente do ator à plateia – uma comunicação de via única. Ali, em diversos momentos, os atores se revezam apresentando anúncios incessantes de apartamentos, vagas de emprego, estatísticas e frases que, misturadas, perdem seus sentidos e por vezes ganham outros (as projeções acompanham esta ação).

Momentos mais assumidamente épicos são os de karaokê, realizados no mesmo microfone. A princípio divertidos, aos poucos se nota a temática recorrente – todas as músicas falam sobre o olhar, olhos, luz, sombra (e isso é apontado no destaque dado a tais palavras na legenda projetada) – e seu último momento traz a imagem mais violenta do espetáculo. No entanto, a intensidade da ação final da atriz nesta cena fragiliza a potência construída na plasticidade da imagem.

Para além das questões apontadas em relação à dramaturgia, “Eigengrau – No escuro” possui em seu estranhamento e no choque entre aquilo que acreditamos, a forma como agimos e as consequências de nossas escolhas algo de humano a ser perscrutado. Ainda que a dramaturgia de Skinner, segundo a própria autora, dialogue com suas questões acerca do movimento feminista, a eficácia da obra parece operar muito mais dentro da subjetividade do que do campo político.

Na completa escuridão, olhar para dentro: a ausência de contrastes no que é intrinsecamente cinza nos impede de vislumbrar todo o resto do arco-íris de possíveis de existência. Neste sentido, é também olhar para fora e compreender que mecanismos movimentam o outro no sentido de seus ideais e quereres – por mais diferentes que eles sejam; por mais que o convívio com estes não seja suportável. Na completa escuridão, todos vemos a mesma cor; e de olhos abertos?