duplo nocaute
crítica de “Término do Amor”, de Pascal Rambert com direção de Janaina Suaudeau
foto de João Caldas
Não se constrói a realidade de uma relação de forma única. Ao mesmo tempo que nos permitimos entregar-nos ao outro, sentindo no dia a dia nossa transformação – que parte de nós, mas é, no mínimo, provocada pela pessoa amada – construímos, cada um, além de quem somos, quem é este outro e o que é a relação.
“Término do amor”, de Pascal Rambert, isola essas construções discursivas em dois grandes monólogos; na batalha pela palavra final que encerra a história de uma relação conjugal, não se trata de pergunta e resposta, mas de verdade versus verdade. A direção de Janaína Suaudeau coloca neste ringue metafórico Gabi (Gabriel Miziara) e Carol (Carolina Fabri) – utilizando-se de recurso proposto pelo autor na primeira encenação do espetáculo, em que as personagens levam o nome dos atores – onde o andamento da disputa se pontua pelo pulso da bateria (“drumaturgy”, ou seja, uma dramaturgia do instrumento, criada por Vinicius Calderoni e executada por Pedro Gongom).
A interpretação dos atores se envolve com os sons da percussão, que acompanha, conduz, comenta e constrói a atmosfera do embate. Escolha interessante de Suaudeau; a proposta de encenação, simples e precisa, serve ao texto de forma potente e clara. Em uma espécie de prólogo, há o único momento de encontro real, físico, das personagens. Toda a história de uma relação se manifesta em poucos minutos, presenteando o público com uma construção do que, de certa forma, é aquele afeto que será pouco a pouco desvelado, repensado e atingido a cada frase.
Após este momento inicial, cada um se posiciona em uma plataforma, na cenografia de Ulisses Cohn. Distantes, porém atentos, Gabi e Carol se ouvem e estabelecem essa nova relação – abertamente teatral, visto que o próprio texto de Rambert apresenta referências ao jogo cênico, principalmente dentro da ideia da construção da presença do ator e à escuta do outro – por vezes pacientemente, por vezes como que golpeados pelas palavras. Ouvir o outro falar sobre um “nós” que já não se dá enquanto no instante presente é se permitir ser nocauteado quase que por si próprio.
A iluminação de Aline Santini, em momentos simétrica, revelando os dois de forma igual, e em outros hierarquizando a relação entre emissor e receptor, favorece o discurso do espetáculo em sua construção de possíveis entre pessoas que se amam – ou se amaram. É uma trajetória conturbada, entre quedas, olhares de reprovação e mesmo de absoluto não entendimento.
Quando Gabi, o primeiro a falar, concretiza o seu término, Carol, com sua fragilidade exposta, passa não apenas a rebater os argumentos – racionais e passionais – apresentados por ele; é uma nova construção do encerramento dessa relação. O “Término do amor” só se realiza neste encontro. Baixando a guarda para golpear o outro com o que há de mais sensível em nós, abrimos espaço para que ele nos nocauteie.