imagine se fossemos dinamarqueses (uma inebriante celebração do podre em nós)
crítica de “Dinamarca”, do grupo Magiluth.
Quando a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a resolução 65/309, em 2011, a felicidade de seus países-membros se tornou passível de quantificação. Em consonância com a ação do governo do Butão de passar a considerar mais importante a “Felicidade Interna Bruta” do que o Produto Interno Bruto (PIB) — ato assumido na constituição de 2008 do país — a felicidade torna-se uma possibilidade de “aproximação holística” ao desenvolvimento, como afirma a nota.
Então, a partir de 2012, relatórios anuais passaram a ser produzidos considerando o nível de felicidade dos habitantes de um país. E um ranking. Nos primeiros anos, a Dinamarca foi o país mais feliz do mundo. Em 2017, foi ultrapassada pela Noruega — no ano atual (2019), também pela Finlândia. A título de comparação, o Brasil estreou na 17a colocação; hoje está em 28o.
Não somos dinamarqueses. E difícil dizer se, enquanto povo, somos felizes. Mais difícil ainda é considerar os parâmetros de tal valoração e o quanto uma medição quantitativa da felicidade pode estruturar políticas públicas. Para além de qualquer crítica às ações da ONU, o que se deve perguntar é se há algo de podre no reino de “Dinamarca”, do grupo Magiluth.
Há, na obra, uma reafirmação constante de que sim, somos dinamarqueses; de que sim, somos felizes. Porém, essa noção e a compreensão da felicidade como “objetivo humano fundamental” é contrastada com o contexto de “Hamlet”, clássico de Shakespeare.
Na dramaturgia de Giordano Castro, notadamente se apresentam diversos personagens da tragédia do príncipe dinamarquês — além de situações transpostas referenciadas diretamente. No entanto, nenhum nome próprio. Sob a direção de Pedro Wagner, o talentoso elenco transita fluidamente entre as necessidades da encenação. Como se organicamente ocupando distintas funções, preenchem com tons pessoais as atuações referentes à cada personagem.
Assim, se constrói uma Dinamarca do momento presente. Estão lá príncipe, rainha, rei vivo e rei morto. Mas são, efetivamente, atores em um brilhante e complexo jogo cênico. A atmosfera de celebração ancora a maior parte do espetáculo; trata-se de uma festa que são muitas, sempre vibrantes.
Neste sentido, o que se configura enquanto linguagem da obra é a permanente dinâmica entre procedimentos teatrais e suas desconstruções. Mesmo quando os atores parecem frenéticos, a arquitetura cênica flui em pulsante equilíbrio — um desafio, ainda mais considerando a disposição em espécie de arena. São os corpos em movimento que recriam constantemente as imagens vivas da obra.
Exemplo disso é a desesperadora organização e desorganização da mesa; como se sempre houvesse, inevitavelmente, algo a se fazer. Vivos em cena, o elenco está em ação contínua — o que captura de forma efetiva o espectador. Na relação construída com o público, uma poderosa ode ao convívio, mesmo quando, no momento onde se cita a peça dentro da peça de “Hamlet”, a plateia é sugestivamente apontada como o assassino Cláudio.
O Magiluth parece saber que a grande potência do teatro é seu campo lúdico. E sendo assim, compartilha com os que assistem a grande brincadeira que é fazer teatro. Quando Castro se faz fantasma, assumidamente solicita os efeitos de voz que fariam a peça “ficar contemporânea”. O ator e dramaturgo sem dúvidas sabe que a fragmentação de sua obra, além do forte elemento performativo, já a colocam dentro desta categoria. Ainda assim, de forma leve e despretensiosa graceja com isso.
Desde o início a plateia é inserida no divertido jogo dos atores. Convidados a compartilhar champanhe ao entrar no espaço, logo na primeira cena vemos Lucas Torres surpreendentemente virando garrafas cheias de cerveja. É o tom desta “Dinamarca”: uma inebriante celebração do que há de podre no humano.
Quando Castro cria, na cena final, uma imagem cuja luz é diametralmente oposta à inicial, parecemos presos no ciclo de reis e príncipes como bobos que nada podem fazer. Mas a isso é confrontado o convite frequente ao hygge.
Se no português fomos prestigiados com a intraduzível e dolorosa saudade, os nórdicos tem uma palavra exclusiva mais confortável: hygge é, grosso modo, um bem-estar tão acolhedor que, ao invés de traduzido, ele poderia apenas ser sentido. Não uma ação; um modo de se viver. Mas não somos dinamarqueses.
Não teremos conforto em noites de inverno frente à lareiras frias. Somos mais quentes; talvez o que nos traduza melhor seja mesmo o sangue cada vez mais pulsante saindo de bocas e pingando em chãos de festas. Aqui Ofélia é narrativa ausente buscando se reconstruir enquanto possível; e somos Hamlets, aqueles que não conseguiram ser.
A felicidade europeia pode não fazer sentido abaixo do equador. Nas temperaturas mais altas o cheiro de podre é menos disfarçável. A evidente tonalidade política de “Dinamarca”, no entanto, se entremeia no jogo teatral e no brincar da ficção. Na encenação do Magiluth, toda a crítica se revela no trânsito entre o distante reino dinamarquês de outrora e nuestra América do instante presente — pois lá nós nunca estivemos; e dificilmente estaremos.
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