destinos (im)possíveis
crítica de “Diásporas”, da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico
foto de João Caldas
O ambicioso projeto da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, que convidou os parceiros da Cia. Histriônica de Teatro e Os Barulhentos para fazer parte desta épica criação de povos, embates e deslocamentos, resultou numa encenação de enormes proporções humanas. São mais de oitenta profissionais envolvidos, sendo 45 atores em cena.
Tendo como mote a alteridade e o pertencimento a partir de deslocamentos populacionais, “Diásporas”, ainda que possuindo um terceiro ato com vislumbres esperançosos, não concretiza em sua dramaturgia a busca destes povos por sua identidade diaspórica, por um novo campo de possíveis. Pelo contrário: prendendo-se à realidade – ao mesmo tempo que propõe povos ficcionais – nos apresenta apenas desfechos já muito conhecidos e a explicitação de um discurso que cansamos de ouvir. Dizimados, escravizados, assimilados; em um retrato cruel dos choques culturais proporcionados pelas colonizações, não há espaço para a gestação do novo, tampouco para uma redenção real – sobra, para a cena final, uma mensagem que chega a nós de forma quase moralizadora.
Trabalho a ser ressaltado é a criação dos corpos, movimentos e relações entre esses povos da montanha, do mar e do deserto, desenvolvido, respectivamente, pelas cias. Elevador, Histriônica e Os Barulhentos. Estes últimos destacam-se pela força coletiva – ironicamente, contando a história de um povo dividido. Partindo da ideia da relação com a natureza de seu entorno como fundante da cultura na construção expressiva, gestualidades por vezes animalescas, por vezes estilizadas, nos apresentam quem são estes povos.
Há uma dificuldade tremenda nessa criação de linguagem – ainda mais colocando-se o desafio de serem povos não-existentes, mesmo que obviamente buscando referências de distintas partes do mundo – e camada fundamental para que ela se estabeleça é a música. Com direção musical de Gregory Slivar e execução deste junto aos atores, sonoridades pouco ou mais reconhecíveis permeiam as passagens e narrativas de cada povo. Outra camada que auxilia nessa construção é o figurino. Com assinatura do carnavalesco Chico Spinosa, traz uma paleta de cores e materiais bem definidos para cada povo; no entanto, elaborada também na relação direta entre eles e seu entorno, acaba furtando-se de agregar novas camadas de leitura.
A encenação se aproveita da quantidade colossal de atores para oferecer ao público diversas possibilidades de leitura a partir da relação entre mais de um povo em cena; por vezes – e desde o início – parecem haver sugestões de interação, que, dramaturgicamente falando, seriam geográfica e temporalmente impossíveis. É como se essas culturas, tão específicas e únicas, não deixassem de se contaminar e se afetar pela mera existência do outro, ainda que distante, ainda que nem nascido. Coabitando o palco, são todos humanos e só(s); se vendo e se relacionando ou apenas coexistindo.
Essencialmente teatral, essa movimentação cênica por vezes nos desloca às regiões distantes habitadas por essas pessoas; por outras, não nos deixa esquecer que é um palco e chega até a sugerir algo como um desfile espetacular, onde essas culturas exóticas são apresentadas como alas em uma escola de samba. Tal impressão talvez decorra da peça se utilizar do Campo de Visão, pesquisa basilar no trabalho do diretor Marcelo Lazzaratto na Cia. Elevador. Esta, catalisadora das relações e que potencializa a presença do coletivo em cena, também pode incorrer numa técnica que se coloca à frente da encenação.
E isso enquanto a encenação em si, muito devido ao trabalho dos 45 atores, sugere algo maior do que a própria narrativa que nos é entregue. A dramaturgia de Cássio Pires se debruça em histórias e discursos já muito conhecidos enquanto deixa de se aprofundar no desconhecido: a resposta destes povos ao choque de cultura, apontada em alguns momentos. Se colocando ao lado daqueles que expulsam os povos de suas realidades – sejam geográficas ou culturais – as memórias diaspóricas são anuladas, quando não objetificadas e tornadas acessórios a serviço da narrativa opressora. Tomando a decisão de assumir esse ponto de vista, “Diásporas” acaba não nos apresentando a redescoberta destes povos em conflito com o diferente, mas sim a anulação da alteridade – típica da mentalidade colonizadora, tão presente em nossa história e ainda hoje.
É claro que são escolhas possíveis de como contar tais histórias; escolhas éticas e estéticas. Aqui, dentro de uma míriade de possibilidades, considerando o número enorme de pessoas envolvidas, fez-se a escolha de levar à cena o terror do embate entre invasor e invadido, a impossibilidade de empatia frente ao conflito “desenvolvido” versus “primitivo”. Ainda que todos terminem juntos e se percebam iguais dentro de um ambiente de estranhamento e tensão, mais importante era a trajetória: a possibilidade do embate transformado em encontro e o (não-)pertencimento e o (não-)reconhecimento de si em um novo estar no mundo. Mas essa não é a nossa história.