devagar/insistir
quarto texto produzido no contexto do ciclo de debates Crítica Isolada, idealizado por Tudo, Menos Uma Crítica e ruína acesa, com realização do Sesc Pinheiros. acompanhe as ações por meio do instagram @critica_isolada.
Antes de tudo: este texto nasce de acúmulos. É o número quatro a ser publicado, em um total de oito previstos dentro do Crítica Isolada. Ele parte do segundo encontro do projeto, com a presença de Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena/MG) e Lorenna Rocha (Quarta Parede/PE), mediado por Fernando Pivotto (Tudo, Menos Uma Crítica/SP) e eu. Com o tema novas formas, novos formatos, passeamos por diversas questões em torno do fazer crítico contemporâneo; na pandemia, na virtualidade. Ao final, cada uma nos presenteou com uma provocação:
Como elaborar modos de ação e criação coletivos no âmbito da crítica diante (e através) do isolamento social imposto?
Lorenna Rocha
Como tecer uma rede entre nossos espaços críticos, que nos fortaleça, fora da lógica dos algoritmos?
Luciana Romagnolli
Ao lado destas questões, os caminhos do encontro e a participação das pessoas presentes através do chat foram o ponto de partida para o texto #3: curta, comente, compartilhe (sim, esse é o título do texto), escrito por Fernando Pivotto. Você pode conferir também o texto #1, assinado por mim, e o texto #2, do Fernando. Pronto. Agora talvez tenhamos chegado até aqui, onde começa este texto #4; devagar.
Em meados de 2019, publiquei uma crítica sobre um espetáculo recém-estreado na cidade de São Paulo. A peça em questão teve suas apresentações suspensas por conta do fechamento temporário do teatro onde estava em cartaz. Algum tempo depois, a obra reinicia sua temporada. Uma amiga do elenco me convida para assistir. Fico confuso. Explico que já vi, e inclusive escrevi sobre. Meu texto não havia chegado sequer ao elenco.
Na época, o ruína acesa era uma página no Medium e ter acesso aos dados de acessos e leituras sempre me deixava um pouco melancólico. Em maio do ano passado, ao inaugurar o site, também passei a me atentar – depois de minimamente me alfabetizar – ao Google Analytics. Instalei um plugin que me ajuda a otimizar as publicações a fim de ser encontrado em sites de busca. Até então, pensava que SEO era o nome de uma função, tipo CEO.
O ruína acesa está no Facebook e no Instagram. Nas duas redes, basicamente republico o conteúdo do site. Para o Instagram, faço uma imagem seguindo um mesmo molde, sempre. De vez em quando crio uma hashtag, como foi a #arquivoruína; noutras vezes tento fazer alguns stories. Sou bastante ativo enquanto observador das redes sociais. Mas no fundo, gostaria de não precisar delas para nada. Nem para divulgar meus trabalhos, nem para passar o tempo.
Tempo. Falamos disso em nosso encontro. O Fernando fala bastante da velocidade das redes no texto dele, de como elas operam, de como conversar com isso; de como conversar a partir disso. Os tempos foram muitos neste último ano. Vejo uma anotação minha: sair do falso dilema, escapar do binomial imperativo/paralisação. Existem muitos fluxos entre esses pólos. Para pensar o que fazer com esses corpos estranhos, termo utilizado por Lorenna para as criações do período de isolamento, precisamos sem dúvida de um momento de pausa. De uma hesitação. Estranhar; estranhar devagar.
Estranhar, como apontou Luciana, inclusive os tantos nós que utilizamos – penso no início de meu primeiro texto, onde falava deste plural misterioso em uma discussão (no caso, éramos vocês, um outro nós). Que coletividades são essas que se formam, se reformam, se desformam? E de que modo podemos propô-las?
Não saberia responder objetivamente aqui, mas me proponho a pensar nisso. Em uma rede de compartilhamentos, de reflexão contínua; e também em parcerias pontuais, por que não? São muitas as plataformas, sites, blogs, perfis, onde se exerce o fazer crítico, de modos tão diversos quanto possíveis.
Contextos, experiências, escritas e formas que podem ter nada em comum e ainda assim caminhar juntes, ombro-a-ombro, em alguma matéria que se tece na velocidade e contra a velocidade das redes. Os tempos que correm correm rápido, mas nas distâncias que diminuem talvez haja algo a ser aproveitado; contra-capturado, engajado.
Rodrigo Dourado, professor de teatro da UFPE, estava conosco no encontro do dia 1º e compartilhou uma questão interessante – que busco reorganizar livremente aqui – em torno do uso feito por artistas e críticos neste campo digital, em disputa: ocupar redes sociais e aplicativos desenhados para usos outros com performances, espetáculos, debates e feituras críticas, não seria uma forma de contra-captura; de, inclusive, recusa à lógica dos algoritmos?
As duas convidadas, eu e Fernando buscamos compreender e pensar sobre isso. Depois de algumas considerações, Rodrigo mandou no chat uma mensagem que tomo a liberdade de citar um trecho: talvez eu esteja com dificuldade em aceitar que estamos trabalhando não pelo teatro ou por nós mesmos, mas para o algoritmo e para os executivos das redes.
Essa colocação segue reverberando em mim desde quinta-feira. Existem as regras do jogo; das plataformas, dos algoritmos, do engajamento. Mas existe uma insistência. Aliás, existem muitas insistências, todas elas distintas. Deste nós a ser construído e estabelecido nas fissuras possíveis. Nas tentativas. Nas dissonâncias, sim. No feed, nos stories, nos podcasts. Em textos.
Talvez o engajamento não seja algo a ser buscado só em publicações, mas também em nós. Articulações coletivas nascem de desejos, que se tornam movimentos. Nos quatro anos de ruína acesa, fui o único autor. Além disso, foram poucas as oportunidades em que me vi em espaços de troca entre críticos e críticas. E estes momentos eram sempre preciosos – tal qual está sendo ouvir nossas pessoas convidadas neste Crítica Isolada.
Lembro-me de um texto da Eliane Brum, escrito no início da pandemia. Ela apontava para o equívoco de se falar em isolamento social para descrever um isolamento que é na verdade físico. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto, escreveu Eliane. Não sei se ainda estamos assim, pois já foram muitos os momentos dentro desta tragédia infindável em que vivemos. Nestes tempos que ora correm ora suspendem, há de se ler o que se pode fazer diante de tanto. E descobrir no fazer.
Quando Fernando me convidou para pensarmos juntos este ciclo de debates, creio que nenhum de nós imaginávamos o que de fato seria. São poucos encontros, é verdade, apenas quatro, somente oito pessoas convidadas, para o muito que há a se pensar não só sobre estes tempos mas sobre os próximos. Pois é isso: criar essas redes, temporárias, desordenadas – por enquanto -, pequenas fagulhas, para nos lembrarmos todos que mudam-se os suportes, mudam-se as estruturas, mas o teatro permanece. Portanto, deve permanecer, também, o pensar crítico. Por nós.
Em todo campo onde se disputa o imaginário há regimes operantes de (in)visibilidade; de legitimação, de exclusão. Compreendê-los é o primeiro passo para então encontrar suas fendas; propor rupturas. Já era assim. Daí a importância de estranhar. De observar devagar. De engajar-se. O distanciamento físico pode nos aproximar. Talvez a virtualidade possa dar (mais) corpo à crítica.