arquipélago, circo, destaque, teatro

encantos (extra)ordinários

crítica de Circomuns, do Circo Teatro Palombar. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“Palombar é o ato de costurar coletivamente a lona do circo. Diversas mãos que se juntam para tecer o sonho da costura e colocar o circo de pé. Depois, por meio do espetáculo, fazem outras pessoas sonharem.” (Adailtom Alves, Circo Teatro Palombar: somos periferia, potência criativa!)

Por entre as tiras coloridas que compõem o fundo do cenário de Marcelo Larrea, artistas do Circo Teatro Palombar observam a entrada do público. Após o terceiro sinal, Circomuns começa com um Ale Hop coletivo e o numeroso elenco ganha a cena. Sob a direção de Adriano Mauriz, intérpretes demonstram desde o início a versatilidade que será vista ao longo de toda a apresentação: cantam, tocam instrumentos variados, realizam diversos números circenses enquanto também brincam entre a representação de tipos, personagens e personas. 

Entrando em seu décimo terceiro ano de atuação, o Circo Teatro Palombar teve sua trajetória contada no livro Circo Teatro Palombar: somos periferia, potência criativa!, escrito pelo prof. dr. Adailtom Alves (Dep. de Artes/UNIR) e publicado no contexto do projeto do grupo contemplado pela 40º edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro. No ensaio intitulado Circomunidade Cidade Tiradentes: Um circo periférico, Mauriz desenvolve reflexões em torno do processo de pesquisa e de produção de Circomuns, lançando seu olhar sobre os enquadramentos de linguagem por onde transita o espetáculo e o coletivo – Alves nomeia o texto “um manifesto no qual se fazem perguntas, mas também se afirmam pelo que são e de onde são”:

“Como jovens artistas de Cidade Tiradentes, não aceitamos ser enquadrados/as em estereótipos limitados a uma imagem definitiva relacionada à periferia, como violência, futebol, pipa na laje, fluxo, funk, nem ao ideal do circo, como lona, lantejoulas e paetês. (…) Assumimos a linguagem do circo como um amor ideal sem saber se o circo que imaginamos é o que existe no universo particular de uma lona.” (grifo nosso)

O Circo Teatro Palombar é fundado na esteira e no contexto de um espaço formativo: Mauriz conduzia oficinas circenses no Centro Cultural Arte em Construção, sede do Instituto Pombas Urbanas desde a chegada do grupo em Cidade Tiradentes (2004). Alves conta, no livro, que em certo momento o artista “conheceu o chamado circo social: ‘Nós já fazíamos circo social, mas não sabíamos que fazíamos’.”; enquanto o conceito possa estar alinhado com a prática, os projetos em si estavam sempre localizados na esfera de financiamentos culturais. É no final de 2011 que, após anos de experiências distintas, há a transição – “Agora não é mais curso. Agora é grupo. No grupo cada um/a é o/a responsável!”.



De volta ao manifesto anteriormente citado, Mauriz o encerra com uma recusa e uma afirmação: em Circomunsnão nos reconhecemos como ‘Circo Contemporâneo’, ‘Circo Teatro’, ‘Circo Tradicional’ ou menos ainda cunhando o termo ‘Circo Periférico’. Somos apenas jovens artistas em busca de uma poética que possa tornar palpável a potência das pessoas comuns do bairro onde nascemos. Queremos apenas aprofundar a pesquisa de 10 anos do Circo Teatro Palombar em direção a uma linguagem própria nesse imenso e magnífico mundo do circo”.

Tais desejos são facilmente observáveis na obra: Circomuns se permite deslizar entre categorias que poderiam estancar o trabalho. Lá estão diversos números, aparelhos e técnicas circenses; lá estão situações que costuram dramaturgicamente as demonstrações de destreza; lá estão tipos e representações. Não é que se trate de algo inclassificável, mas talvez o interessante seja efetivamente pensar em torno dessa “linguagem própria” que parece se descobrir no fazer de cada obra.

O Palombar, que carrega Circo Teatro no nome, olha para essa herança e organiza um espetáculo que de algum modo questiona o que se pode fazer com essa própria ideia de circo teatro. Elementos tradicionais compõem o caráter circense de Circomuns, inclusive com os aparelhos e apetrechos à vista do público desde o início, e há uma perspicaz crescente no nível do que impressiona os olhos do espectador – e mesmo cenas que aparentam simplicidade na realização são, perceptivelmente, fruto de grande técnica e destreza, notadas em todas as pessoas integrantes do elenco.

A sucessão de acontecimentos que estrutura Circomuns é, assim, um belo ato de dar a ver tudo aquilo que insiste em existir mesmo por entre as engrenagens do capital – e uma pequena maleta evoca Tempos Modernos, de Chaplin, trazendo o esmagamento do trabalhador-artista nos meandros do mundo do trabalho. No avesso do ordinário, encantos que podem habitar fissuras; sonhos que se devem despertar, estruturas que surgem como esqueletos do invisível disponíveis para serem transformadas, feitas coisas-outras entre risco e fascínio.

O Palombar, composto por pessoas operárias da arte e da cultura, sujeitos periféricos do extremo leste da cidade, faz do palco paisagens, frestas e paragens, como se revelando a força do extraordinário que pode haver, ainda que escondida, no massacrante cotidiano. Circomuns é a rotina tornada espetacular a partir do encontro entre o discurso e a técnica, operando aproximações e distanciamentos entre o deslumbrante e o reflexivo. As figuras que tomam o centro das cenas ora surgem como tipos, ora como representações sociais. Metáforas cristalinas – como o trabalhador na corda-bamba – dividem o espaço com momentos onde a própria reflexão é também periférica, quando comentários do elenco feito coro-testemunha oferecem ao público chaves de leitura para aquilo que se vê.

Por vezes, a proeza dos números se descola dessas camadas do discurso, mas o desenvolvimento da obra não permite que isso seja perdido de vista, sempre havendo um dado crítico na construção narrativa que leva às ações acrobáticas ou nos acontecimentos que as encerram. Circomuns também acerta ao investir no riso, no cômico – o humor está presente não apenas por seu potencial político, mas dentro de um entendimento de que é importante que a plateia se divirta. 

Um microcosmo da cidade como vista pelos de baixo, das margens, invisíveis: o circo e o teatro se irmanam a outras expressões da cultura urbana, como o hip-hop, na construção dessa realidade que é denúncia e devaneio, concreto e voo. O Palombar faz de sua pesquisa estética um espaço de aliança de linguagens para dar conta desse tanto que se retrata. Sem nenhuma ingenuidade, Circomuns lança luz à potência encantatória da arte (de viver).

logo do projeto arquipélago

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serviço
CIRCOMUNS
Com Circo Teatro Palombar

Duração: 60 minutos
Classificação Livre
Quando: 10 a 19 de janeiro de 2025, sextas-feiras, sábados às 20h, domingos às 17h30
Onde: Sesc Belenzinho - Sala de Espetáculos 02
Endereço: R. Padre Adelino, 1000 - Belenzinho, São Paulo - SP, 03303-000
Informações: https://www.sescsp.org.br/programacao/circomuns-11/
Ingressos: R$15,00 (credencial plena), R$ 25,00 (meia-entrada), R$50,00 (inteira)

ficha técnica
CIRCOMUNS

Coordenação geral e Direção: Adriano Mauriz. Assistente de direção: Marcelo Nobre. Cenário: Marcelo Larrea. Maleta: Eduardo Salzane. Adereços: Coletivo Circo Teatro Palombar. Figurino: Carlos Gardin e Laura Alves. Iluminação: João Alves. Concepção e Produção: Coletivo Circo Teatro Palombar. Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini. Técnica de Som: JP Hecht. Artistas: Anna Karolina, Dinho Dini, Giuseppe Farina, Guilherme Torres, Henrique Augusto, Henrique Nobre, Jessica Silva, Leonardo Galdino, Marcelo Nobre, Paulo Santos, Vinicius Mauricio.