cenas curtas, dia 4 — a cena e seus códigos: cosmogonia de dores e reinvenções
olhar de amilton de azevedo sobre o quarto dia [27/9] do 20º Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).
Caos e cosmos. O espaço cênico e esse campo de retomada e reinvenção de mundos. Dia de Cosme e Damião. Salve as crianças! No texto de ontem, citei Baco Exu do Blues afirmando “carrego comigo coragem de Erê”. Foi no café da manhã desta sexta-feira que a frase me ocorreu, no dia deles. Esbocei o texto na noite de quinta. Dormi tarde, na madrugada chuvosa, acordei cedo para um dia azul. Mirei o horizonte da cidade na rua Sapucaí e pensei o quanto isso é pertinente: carregar consigo a coragem dos Erês. Cruzando a ponte no sentido da avenida Afonso Pena, me vi lembrando de São Paulo. Centros de metrópoles sudestinas talvez se remetam; ou foi por saudade de casa.
Quinta-feira chamei o hotel de “casa”. Não sei o que isso significa. Ontem, não soube ligar o ar-condicionado do quarto. O dia foi bonito; vi mais céu do que estou habituado. Guilherme [Diniz], durante o bate-papo, percebe o tempo que temos e sugere a possibilidade de divagar devagar. Existir assim é bonito. Encantamentos tem tempos próprios e intensidades diversas. E as muitas possibilidades criativas entre impulsos, expectativas e ação concreta. Aí penso em Stanislávski e seu “se” mágico. E se o mundo fosse pensado a partir de outros paradigmas?
A noite de sexta-feira adensou o Cenas Curtas. Em uma primeira mirada, parece difícil estabelecer uma lógica de continuidade como parecia possível nos dias anteriores. No encher-se do Teatro Wanda Fernandes — em poucos e surpreendentes minutos, uma plateia escassa fez-se volumosa — o festival preencheu-se de estranheza, vislumbrando reinvenções possíveis.
Estruturando logicamente uma trajetória que possa ter sido lida nesta noite, talvez fosse interessante pensá-la como anterior ao que se viu nas primeiras três noites. Antes de acalmar e acordar almas, antes de buscar estruturas que sustentem discursos e antes de localizar tais discursos, há a primordial organização de caos em cosmos.
Ainda que possa soar uma imposição esta tentativa de organização que parte de um olhar externo, há um vínculo mais ou menos sutil de todas as cenas nestes resgates e ressignificações acerca de cosmovisões e as lidas com tais míticas — mais ou menos cotidianas.
Outra tentativa de unidade possível que conecta o que foi visto na sexta-feira é a pesquisa que volta o olhar para não apenas a codificação da cena, mas para seus signos e o uso que se faz da materialidade cênica. O que se lê do que se vê; quando uma cena opera um trânsito fluido entre distanciamento e identificação, efetiva-se uma das potências mais essenciais da arte teatral: a possibilidade da construção de alteridades.
Nesta pluralidade, dado frequente nas quatro cenas foi certa estranheza — reverberada em certo grau de humor e, de modo significativo, engajamento do público frente ao ato teatral. Recriam-se e reinventam-se cosmos e caos no andar das propostas.
No que se desenhou um começo truncado, Preto Amparo traz de Santo Amaro (Bahia) seu Endereço Postal. Enquanto o nome parece localizar uma ação, a elaboração cênica ganha ares quase místicos. No escuro, Porque é proibido pisar na grama, de Jorge Ben Jor, atiça a curiosidade do público que anseia pela primeira cena da noite.
É próximo ao final da canção que a luz revela Amparo num colchão composto apenas por molas, ouvindo atento e acordando com uma vontade de saber como ia ele e seu mundo. O recorte da iluminação, também assinada por Amparo, situa três nichos distintos e a este parece caber apenas um sonho cru. É no centro que o ator lança mão de uma espécie de metateatralidade performativa, em diálogo direto com a plateia.
Os espectadores seguem em chave de estranhamento frente ao que se apresenta. Amparo é um intérprete carismático, preciso e consciente de sua proposta. O que se desenha no círculo delimitado por uma luz neon é uma tentativa de reorganização desses tempos e suas agruras, repetidos pelo ator em uma intrincada dramaturgia que opera repetições cumulativas — e que nas retomadas, redimensionam-se — e de certo grau metafóricas.
Não se trata de uma cena simples de apreender. A estranheza é o tom que norteia este Endereço Postal — o nome é uma armadilha para a compreensão. Amparo propõe uma nova cosmogonia em oposição aos tempos — e inimigos — que correm. A composição se dá em tempo e lógica própria. Reiterando a necessidade de nos apegarmos à uma ilusão de termos controle sobre o universo, na ação cênica laranjas viram planetas que se espalham por todo o palco e certos signos presentes na cena permanecem periféricos e misteriosos.
As escolhas de Amparo demandam um engajamento e um investimento dos espectadores — o que, é necessário apontar, talvez não ocorra. Debates concretos acerca da construção de opressões e subalternidades — eles nos marcam — se fazem presente, mas em uma chave que mais sugere e menos explicita. Endereço Postal reorganiza os tempos que se tornaram caos na tentativa de criar mundos outros e operar uma revolução subjetiva, como afirma na sinopse da obra. E também finda universos.
A cena seguinte da noite propõe uma atmosfera bem distinta da anterior. O Grupo Experimental de Teatro (GeMtE) apresenta, em espécie de cena-ritual, Ecdise. Com uma pesquisa que remete à Amazônia, o GeMtE, de Belém (Pará), codifica por meio de sonoridades percebidas como a de troncos linguísticos dos povos originários o que se lê como o processo de troca do exoesqueleto de animais como cobras — que nomeia a cena — e ações cênicas que reverberam uma ritualização da vida. Os três performers trazem em suas construções corporais e composições imagéticas um recorte denso do que é a floresta amazônica.
Ecdise transmite ao público a seriedade e o respeito do grupo na verticalidade desta pesquisa. Curioso pensar que o acordar destas grandes cobras da mata pode ser exotificado não pelos artistas, mas pelo nosso olhar, desacostumado a ser acometido pela percepção de que essas alteridades nos coabitam enquanto nação.
A apreensão da ritualística é difícil, mas as atmosferas construídas pelo envolvimento dos performers em suas ações e sua implicação que soa antropológica nestas cosmogonias transbordam e fascinam. Nas peles de Marvin Muniz, Yuri Granha e Wagner Guimarães, pinturas indígenas friccionam as camadas animalescas de suas movimentações.
O figurino-cenografia de cada um também gera camadas de leitura diversas por este olhar que parte de um lugar diferente. Uma corda, uma rede de pesca e uma rede de descanso compõem as particularidades de cada uma destas cobras. Ao mesmo tempo, é inevitável não assimilar uma leitura que compreende também o uso feito por não-indígenas de tais objetos.
De maneira mais direta ou em aproximações quase metafóricas, parece ser na lida com esta materialidade que esta Ecdise pode ganhar contornos políticos; uma evocação não apenas do processo de trocar a própria pele, mas qual pele agora habita os povos originários e o ecossistema da floresta, cada vez mais arrasados pelo descaso do poder público e de partes da sociedade civil?
A dor que emerge deste ritual é, então, essa processualidade mítica em tensão com as possibilidades de leitura construídas pelo olhar do público. Em certo sentido, a iluminação da cena na apresentação no Galpão Cine Horto pode soar como um ruído: em meio à atmosfera muito bem sustentada pelos performers, a dimmerização das cores dos LEDs insere uma teatralidade que talvez gere um distanciamento não muito bem-vindo.
Com a plateia suspensa em um entendimento mais racional, engajada frontalmente com o seu imaginário, é quase como se a liturgia que sustenta Ecdise fosse enfraquecida ao ser lida em um registro meramente cênico, no sentido tradicional.
Após este vislumbre de um universo completamente outro à grande maioria dos presentes no Cenas Curtas, a terceira cena da noite possui características diametralmente opostas. Em Represa, Clara Trocoli — que atua e divide a direção com Lara Duarte; esta, também assina a dramaturgia — lida basicamente com apenas um signo por toda a cena: um rodo. Em uma coisa, existem muitas coisas, escreve Brecht sobre os tantos usos de uma lança pelo guerreiro horácio em Os Horácios e os Curiácios.
Duarte parte de dados biográficos de Trocoli para escrever uma dramaturgia que parece tensionar biodrama e autoficção de maneira potente. Nas metáforas e imagens, com a ressignificação do objeto rodo, a narrativa do particular redimensiona-se para muitos lugares. A escolha de ter a sua história escrita por outra pessoa opera uma espécie de reinvenção da relação com a dor do vivido.
A pesquisa em processo aponta para diversos caminhos à fim de desenvolver-se e buscar, caso seja o interesse das artistas, maior radicalidade. Seja na lida com a materialidade cênica — ou seja, as ações com o rodo — ou mesmo no dado performativo da cena.
Em imagens que oscilam entre humor e dor, Trocoli age como quem compreende que há poças d’água irreconciliáveis, que rodo algum irá secar. A água que pode acumular-se nesta Represa é goteira, lágrima, tempestade e oceano. Neste sentido, cabe a provocação do que acontece no embate com este líquido. A cantora Bruna Mendez lembra que o mesmo mar que nega a terra cede à sua calma. Enquanto o movimento do mar dissolve a matéria, transformando rochas em areia, outras águas podem sedimentar o que há muito era partícula.
A primeira ação de Trocoli é uma corrida no fundo do palco. A imagem seguinte, o caminhar sob a resistência do rodo, parece construir uma oposição entre liberdade e este represar-se que condiciona existência. Ao longo da narrativa, no entanto, a primeira corrida passa a cada vez mais parecer com uma fuga inicial. O transbordar-se antes de começar a falar é uma imagem estranha que gera certo riso. A atriz transita bem entre as atmosferas da dramaturgia de Duarte — e carrega consigo o engajamento do público.
Aos poucos o acontecimento disparador, a tempestade dentro do crânio, muito mais do que a em um copo d’água, passa a ser revelado — mas sem perder uma potente incerteza acerca do que de fato aconteceu. Da negação do conceito vago do perdão ao término da “mensagem enviada” com beijos, Clara, a cena carrega tonalidades políticas a partir de afetividades. A reação quase catártica do público reafirma essa possibilidade da cena como espaço de expurgo e ressignificações.
De forma sagaz, as artistas ainda inserem uma ação final que sugere o assenhoramento de Trocoli sobre sua história — tornada ficção pelas palavras de Duarte, na cena há mais uma atriz do que uma performer. Represa é contundente em seu discurso e não deixa dúvidas de que certos homens são mesmo tão pequenos que poderiam se afogar em um copo de 200ml; e que mulheres cada vez mais transbordarão ao invés de represar suas águas.
A cena que encerra a noite traz consigo uma especificidade interessante de pesquisa de linguagem, ao passo que segue, de certo modo, o eixo temático da anterior — e reverbera essa potencialidade cênica de subverter visões de mundo compreendendo certos códigos que as sustentam.
As Bacurinhas exploram a masculinidade tóxica em Is This a Man? performando a heterocisnormatividade por meio da linguagem de Drag King. A cena traz situações cotidianas que se desenvolvem carregam traços mais fortes, mas seria mentira vê-las como extremamente exageradas. Há um triste dado de realismo nesta doentia afetividade que se constrói entre homens padrões — ou seja, dentro da norma supracitada.
Além das ações no palco, Is This a Man? projeta vídeos que voltam à reverberar a estranheza da noite do Cenas Curtas. Partes de corpos femininos — bundas, seios, vaginas — também “montam-se” e narram histórias tão comuns ao agressivo cotidiano vinculado ao masculino. As Bacurinhas articulam de maneira muito efetiva a criticidade da cena. Entre imagens divertidas, partem de construções bem-humoradas e, pelos crescentes das situações, deslocam o público para uma zona de grande desconforto até o final da cena. Entre deboche e denúncia, acusações fundamentais e dolorosas são colocadas.
Entre códigos mais ou menos apreendidos pelos espectadores, a quarta noite do Cenas Curtas trouxe consigo uma urgência dos artistas de recriar universos de forma simultaneamente crítica e poética. Compreende-se assim o palco como este campo de possíveis; a relação mais ou menos harmônica entre contexto e imaginário. Uma trajetória de dores, em distintas organizações de cosmovisões e códigos. A síntese possível e a busca, talvez fundamental, de não negar as diferenças; confrontar alteridades, potencializar os encontros.
[amilton de azevedo está em Belo Horizonte à convite do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto]