cenas curtas, dia 3 — os lugares e o palco
olhar de amilton de azevedo sobre o terceiro dia [26/9] do 20º Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).
Acordei e vi o dia chuvoso. Trouxe de São Paulo este tempo ruim, será? Volto a dormir e perco o café da manhã. Decido nem sair do hotel; peço delivery no almoço. O cigarro acaba. Circulo por quarteirões sob a garoa a procura de um maldito Camel azul. Demoro para dar conta que há uma tabacaria a menos de um quarteirão de onde estou hospedado. Neste meio tempo, sinto-me estrangeiro mesmo dentro da mesma pátria. O sotaque, os cheiros, os tempos. Existir fora de onde chamamos de casa é sempre um deslocamento; uma faísca que pode nos mover para um outrar-se.
São muitos os lugares onde que vivemos nossas vidas. Se as cenas do segundo dia pensam sobre a organização dos discursos, as do terceiro parecem ecoar seus lugares. Entre o debate e as Cenas Curtas, vejo xs performers do Pink Block. A mera passagem destas figuras gera em mim uma inquietude bonita. No rolê isso se reafirma, mas ali era quase intuição: certos códigos devem ser subvertidos para que se possa destruí-los. Ao mesmo tempo, no primeiro trabalho da noite, o amor se revela enquanto roleta russa. O amor é roleta russa. O encantar-se, talvez uma das substâncias básicas da beleza da arte e da vida, por outro lado, talvez não encontre metáfora. Apenas existência.
No mundo em que habitamos, localizações e marcadores sociais das diferenças fazem parte de nosso cotidiano. Para os privilegiados, talvez menos — até pela resistência de compreender que lugares que antes se entendiam como universais também possuem seus recortes. Hegemônicos ou dissidentes, discursos partem de lugares sócio-historicamente construídos.
O teatro contemporâneo tem abarcado cada vez mais a questão dos lugares de fala. No terceiro dia do Cenas Curtas, o acaso da organização curatorial decanta um olhar interessante sobre isso. Não apenas o locus social, mas as possibilidades de refletir acerca de lugares concretos e simbólicos; considerando a espacialidade do palco e especificidades de linguagem.
Cada uma a seu modo, as quatro cenas da noite reverberaram localizações muito evidentes. Geográficas, de gênero e de raça. O mais rico talvez seja observar as múltiplas possibilidades de desenvolvimento tais discursos. A narrativa estabelece cada vez mais um diálogo franco com a performatividade na cena atual.
Quando Francisco Thiago entra com uma cadeira, um copo d’água e um microfone para Menino Amarelo do Buchão, é sua presença transparente que chega primeiro à cena. Uma escolha de localizar-se na periferia do espaço, à esquerda baixa do palco, corrobora o situar geográfico da narrativa marginal a ser contada. Sua franqueza é ponto de partida para um contar de história que efetiva uma importante lembrança: o ato teatral é, fundamentalmente, um ato de escuta; de partilha.
Em um verborrágico falar, Thiago reitera que sintetizará a longa história — mas nem por isso deixa de debruçar-se em certos pormenores e, até mesmo no momento quase final, de uma canção, explicar e explicitar o que se está contando. A ação vocal quase monocórdica do performer é paradoxalmente acúmulo e esvaziamento. Em uma linearidade que beira a confusão pela organicidade do contar, agregando detalhes-digressões, sedimenta o narrar da complexidade de uma vida ingênua. Parafraseando Baco Exu do Blues, o performer-narrador carrega consigo a coragem de Erê. São “palavras de Pedro Bala”, como canta o rapper em Capitães de Areia. Tal qual Jorge Amado inseriu o menino de rua no centro de sua criação literária, este amarelinho vive um breve momento de protagonismo na própria vida.
Thiago surpreende nos momentos finais onde parece que não há mais para onde ir. Sua escolha formal da construção cotidiana do narrar consolida uma espécie de assembleia entre ele e o público — tanto que esboça-se uma abertura à participação, aproveitada por um espectador.
Ao situar a história deste Menino Amarelo, um amarelinho, aponta-se para uma aridez da vida. E o performer sabidamente recupera tal imagem esboçada no início, agora não mais na chave narrativa, mas quase perturbadoramente dramática, ao findar a cena nesta secura existencial do tanto que somos.
A segunda cena, A Cobradora, da Zózima Trupe, é parte do espetáculo do grupo de mesmo nome em cartaz na cidade de São Paulo. Aqui efetiva-se um lugar historicizado do feminino, problematizado pelo jogo — talvez triplo — do significado de seu nome e das relações estabelecidas. Maria Alencar surge como uma figura entre abstração mítica e opressões concretas; uma potência cassandrica de profeta desacreditada. Seus tantos figurinos sobrepostos são retirados como forma de libertação — curiosamente, permanece uma ligação com estas tantas ancestralidades; talvez não negadas mas sim superadas em suas limitações.
Sugere-se uma burca, uniformes, roupas castradoras de liberdades e possibilidades. Esta Cassandra-Eva-Lilith-tantas parece ser evocada para, com o perdão do trocadilho, dar o troco. Cobrar as dores, dobrar os amores. Para além destes jogos de palavra, há de se lembrar não apenas da trajetória da Zózima e seu trabalho com teatro no ônibus, mas também a própria função efetiva desta trabalhadora. Ainda que permaneça sentada imóvel dentro de um ônibus, ocupa um lugar de trânsito, de passagem; quiçá até uma encruzilhada que se move no girar da catraca.
Esta Cobradora surge nesta espécie de não-lugar, caminhando passo a passo com os focos de luz, para insistir no que há de bonito do mundo. Longe da idealização, busca confrontar o que foge desta beleza; sintetiza-se então um feminino mítico, ainda que historicizado, afirmando seu lugar de fala para questionar a origem das opressões.
De certa forma, ainda que de modo diametralmente diverso, a cena seguinte investe também nesta temática. Afirmando a potência que existe de pesquisar possibilidades de trabalhar linguagens cênicas tradicionais dentro do contexto atual, Imbróglia traz uma espécie de palhaçaria feminista. Despojada, conta com o timing e o carisma de Bel Flaksman, Juliana Brisson e Laura de Castro para gerar um engajamento de outra ordem, com uma positiva despretensiosidade, em relação à temas caros aos debates contemporâneos. Na trajetória da cena, as três palhaças caminham em espiral entre gags tradicionais e apontamentos certeiros, sempre na chave cômica e de comunicação direta com o público cativado.
Sem pressa, as três palhaças desenvolvem a ação circulando em torno de seu cerne, que aos poucos se torna cada vez menos sutil. Calibrando de forma interessante comédia e discurso — se é que seja possível distinguir desta maneira — Imbróglia diverte e gera reflexão. Entre o historicamente denominado baixo cômico e um refinamento impressionante na construção de imagens sinteticamente potentes, oscila entre momentos belos e hilários para gerar questionamentos sobre o feminino.
Encerra a noite uma sempre fundamental e dolorosa racialização da vida. Pietá, do Coletivo Espelho, começa sem luz e nas vozes fora da cena alertando para os “faça” e “não faça” sugeridos para a juventude negra no Brasil. A iluminação de Eliezer Sampaio e Ismael Soares entra com tremenda força para escurecer o debate.
Entre a construção de imagens poéticas, por meio de canções e composições cênicas, e o firme tom de denúncia, talvez falte uma maior definição entre os dispositivos propostos pela cena. Na repetição do questionamento — algo como “eu quero alguém” — pode-se remeter, de certo modo, a Um Preto, de Felipe Soares, apresentada na Mostra Cena-Espetáculo. Aqui, no entanto, parece haver uma busca por maior harmonização entre as camadas; sendo assim, ainda que a movimentação — que sugere um jogo das cadeiras, onde talvez não haja vencedores — gere uma dinâmica interessante na cena, há um campo de incompreensão na construção dos sentidos entre falas e ações.
Porém, talvez esteja mesmo no descompasso o que há de central ali. A figura maternal, sentada ao centro, reverbera pontualmente o que a circunda. A mãe segue, atenta, firme; mas também atônita. Em seu ato final de lavagem e no alinhamento dos uniformes no proscênio, impressiona a potência de uma imagem simples.
É um alumbramento de certa forma triste: só no ato de exposição daquelas roupas, prescindimos do sangue enquanto signo cênico; ele já é materialidade documental fora do palco. Além das violências reveladas e desdobradas em Pietá, há o que o próprio público projeta acerca deste histórico e institucionalizado genocídio que se verifica nas periferias pretas de nosso país. Mesmo que se possa considerar que a reprodução da imagem-título da obra não carregue consigo originalidade, infelizmente tampouco é original o cotidiano da negritude brasileira, massacrada.
No Rolê do dia, caminhando até o Zona Last, o Pink Block faz seu Ensaio de Uma Democracia Cromática Número 1. Talvez haja muito o que se dizer acerca da relação construída entre processo e produto; discurso e performance. Dentro da linha construída pelas cenas, vale focar no lugar de onde parte esse ato-manifesto: fagocromáticos, agem na direção de um talvez inatingível anti-hype dentro da criação contemporânea. Ao situar, ainda que de modo incipiente e complexo, o chão — rosa? — de onde parte sua fala, o Pink Block ensaia uma eclosão do cartesiano.
Será esse o caminho? Afirmar e compreender lugares de fala à fim não de desconstruir certas normatividades, mas de efetivamente destruir as hierarquias existentes? Então, não buscar adiar o fim do mundo, mas provocar precisamente o fim de certas configurações de mundo na tentativa de fazer emergir o que há de latente, oculto, subterrâneo, as tantas cores e existências soterradas, em todas as suas potências.
[amilton de azevedo está em Belo Horizonte à convite do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto]