destaque, teatro

e como se nada

amilton de azevedo escreve sobre Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, de Tiago Rodrigues (Portugal), apresentado no Festival TransAmériques (FTA – Tiohtià:ké/Montreal) de 2024. este texto é parte de uma cobertura especial; o crítico viajou ao Canadá a convite do FTA.

[english translation of this text available here: and as if nothing]

“Vez por outra rola uma desânimo brabo com a vida. Mas aí eu lembro que esses fascistas querem mesmo é a morte e me ocorre que a grande transgressão é ficar vivo. Viver é a nossa grande vingança contra esses putos.” (Luiz Antonio Simas, em seu tuíter)

Catarina narra o incêndio que será causado. As pessoas se acostumam a estar a apagar fogos, mas e quando se é necessário provocá-los? A família espera por Catarina, seus 26 anos recém completados, momento em que torna-se não mais apenas testemunha mas agente daquele ritual anual. Catarina e a Beleza de Matar Fascistas (Portugal, 2020), de Tiago Rodrigues, apresenta a história deste contínuo colocar-se em ato, entre justiça e vingança.

O gesto repetido a cada ano é concreto e também simbólico, tal qual a casa ao centro da encenação – e seu chaparro, cuja cortiça fora retirada, diferente dos outros tantos plantados, citados ao longo da narrativa – que se abre enquanto o debate familiar se torna cada vez menos íntimo na cenografia de F. Ribeiro, e a iluminação de Nuno Meira, que move tempos e atmosferas em suas transições. Também o figurino de José António Tenente faz de todas aquelas Catarinas algo que simultaneamente as distancia do cotidiano contemporâneo mas mantém referências a períodos de Portugal.



A beleza de matar fascistas e fogos que não se controlam. Catarina é uma obra generosa no que diz respeito à constituição de suas personagens e seus modos de ser-estar no mundo, tendo a dramaturgia de Rodrigues um preciso alinhavar entre diálogos corriqueiros, citações diretas e indiretas, dilemas filosóficos e falas de imensa beleza poética. Quando a razão de ser daquelas Catarinas se revela na carta lida por Catarina, prima do narrador, nosso amor, os sentidos em torno da encenação ao mesmo tempo se simplificam e se complexificam. Está tudo lá: motivos dificilmente questionáveis e um ato de profunda honestidade e coragem.

Mas Catarina sozinha não faz verão. Catarina e a Beleza de Matar Fascistas se passa no dia onde a certeza do gesto encontra-se com a dúvida. Então, Catarinas abordam o dilema do bonde, o paradoxo da tolerância, relações entre intenção e efeito, evocam Brechts e Gandhis em uma encenação aberta, onde a plateia é incluída no debate. A natureza épica da obra de Rodrigues se anuncia logo no início: Catarina, o narrador, aquele que escolheu o silêncio, está contando do que já se passou. 

Em seu movimento de dar a ver contradições, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas oferece uma experiência brechtiana para o público; segundo Augusto Boal, Brecht “propõe uma Poética em que os espectadores delegam poderes ao personagem para que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem”, produzindo-se, assim, conscientização. Quando é chegado o momento do grande golpe de teatro aplicado por Rodrigues, a obra dá um passo adiante, não de forma explícita, na direção da “Poética do Oprimido” de Boal: “o espectador ensaia, preparando-se para a ação real“.

Fica subentendido que a encenação passa a esperar algo da plateia. Reações são variadas, entre risos nervosos, vaias, insultos, tentativas de alguma coisa. E como se nada, tudo segue até o fim. Após tudo o que se debate, todas as complexidades trazidas à tona, as pequenas discordâncias, a reflexão profunda, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas oferece ao público o inacreditável do real.

Não há pontas soltas na dramaturgia exatamente pelo seu desenlace, restando ao público apenas organizar aquilo que viu para além do que resulta excepcionalmente simples no que diz respeito ao discurso da encenação. Pode-se procurar por culpados, responsáveis; ou pode-se buscar nas entrelinhas o que fazer, então, diante disso que se vê e que se vive. E a plateia é feita testemunha, cúmplice, partícipe; diante de tanto, é feita de que?

A mão fantasma de uma efêmera Catarina que repousa sobre o braço que aponta uma arma. O poder de parar o tempo. Uma foto de família. Ouvir, ouvir, falar, falar. Beber, cavar, plantar, empreender, preferir não, lembrar, militar. Catarina, o narrador, e seu silêncio que permanece. Nesta fábula contemporânea, muito se move. E como se nada, entre violência e beleza, esperança e vazio, passado e futuro, a vida segue (em desencanto).