como se chamam os touros mortos? (tragédias com nome próprio de mulher)
crítica de “Carmen”, com Natalia Gonsales, Flávio Tolezani e Vitor Vieira; direção de Nelson Baskerville
foto de Silvia dos Santos
Revisitar histórias de outros tempos atravessando-as com um novo olhar, inserindo-as no contexto do mundo contemporâneo, é sempre uma possibilidade de iluminar temas do nosso tempo. Em “Carmen”, a partir da novela de Prosper Mérimée, compreende-se que, ainda que sujeitos e não objetos da História, seguimos condicionados e presos à valores antigos – e perigosos. A dramaturgia de Luiz Farina relê o conflito entre Carmen (Natalia Gonsales) e José (Flávio Tolezani) buscando uma nova ótica: não é a liberdade dos touros que os leva à morte, mas sim a brutalidade das touradas.
A liberdade se coloca ao lado de Carmen, ela, aqui, o touro, vista em sua complexidade – os impulsos, os desejos, os instintos: elementos normalmente reconhecidos (e permitidos) somente em homens. A humanidade dela, suas idiossincrasias e suas escolhas, não é a culpada por seu próprio assassinato; em uma balança que por vezes parece que nunca deixará de ser desigual, posse e desejo, amor e ódio, impulsividade e controle sempre acabam, enviesadas por nossa cultura machista, em violência disfarçada de ciúmes.
Na primeira cena do espetáculo estão Carmen, José e o Touro (Vitor Vieira) em cena. Apenas ela está de rosto descoberto; talvez um indício de que não se trate da história de um homem violento, mas de um embate onde só o nome próprio da vítima seja significativo – seu algoz, não fosse José, poderia ser qualquer homem. Enquanto o Touro opera, em grande parte da encenação, como arquétipo de um espírito livre e selvagem, José por muitas vezes – ainda que também apresentado em sua complexidade – é a representação de todo um gênero. A tragédia da mulher é buscar a liberdade de ser uma, de ser em sua plenitude.
A sintonia de Gonsales e Tolezani em cena faz com que o espetáculo atinja uma enorme potência dramática, ainda que a obra transite por diversas linguagens, fazendo uso de recursos épicos, como a narrativa, canções adicionando camadas à dramaturgia e falas no microfone diretamente para o público – além da dança e da criação de imagens, corpos e movimentos expressivos. Tal trânsito por vezes se dá de forma orgânica e sincrônica, ancorando o discurso; por outras, abre o campo de leitura para novas camadas: como a relação do Touro com Carmen, construída ao longo do espetáculo – que findará com ambos mortos.
Na encenação de Nelson Baskerville, fica nítida a sua assinatura. Ao agregar diversos elementos do teatro contemporâneo, sem medo de passar por clichês e apresentar o ridículo na cena, Baskerville cria ruídos que geram estranhamento no público, de forma que este não deixa de participar ativamente da obra. Na cena onde José e Carmen consumam ardentemente o seu amor, por exemplo, a narração de suas ações explicitam o absurdo de entregar-nos inconsequentemente aos nossos ímpetos mais primitivos; ainda que a escalada da cena sugira um forte viés cômico, não é exatamente divertido. Assim como na representação da mulher esfaqueada por Carmen (onde Vieira veste uma roupa de um corpo feminino gordo e nu) tais escolhas deslocam o público de sua zona de conforto e de compreensão.
O cenário e iluminação de Marisa Bentivegna, ainda que dialogando de forma direta com a cena em boa parte do espetáculo, também adiciona possibilidades de leitura simbólica: as grades que efetivamente servirão, concretamente, de prisões em momentos da narrativa, também podem ser vistas de forma simbólica; as prisões onde nos inserimos, onde somos inseridos pelo outro e as grades que nos dividem – o selvagem e o civilizado. Quando, no último ato, surgem as várias cabeças de boi – nas varas onde Carmen também será alçada, como mais uma carcaça abatida – a tourada se efetiva como metáfora, construída ao longo de todo o espetáculo.
O embate proposto dentro da tauromaquia, do domínio do homem sobre o animal selvagem e livre, encontra um triste paralelo nas relações de gênero – e se ainda hoje a brutalidade destes eventos ainda encontra apoiadores e entusiastas, também nas diversas violências contra a mulher não faltam argumentos que colocam em cheque até mesmo a existência de tais opressões. Assim como nenhum touro busca seu matador, liberdade e ímpeto de nenhuma mulher justifica sua punição. Em uma tourada não existem vencedores.