mulher, assentamento do vento
crítica de Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos, da Companhia de Teatro Heliópolis
Três anos atrás, a Companhia de Teatro Heliópolis estreou (In)justiça, 11º trabalho do grupo fundado em 2000. O texto que reflete em torno da obra no ruína acesa traz em seu nome uma súplica: olhai por nós, Xangô. Agora, na peça que marca o retorno das apresentações presenciais na sede da companhia, a Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho, a dramaturgia de Dione Carlos para Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos faz um pedido semelhante ao evocar Iansã enquanto guia, protetora e arquétipo.
As encenações de Miguel Rocha compõem um díptico: a ideia da pesquisa que resultou em Cárcere nasceu durante o processo de (In)justiça, e os espetáculos podem ser friccionados de maneira ora harmoniosa, ora furiosa – talvez, até, de modo semelhante à relação entre os orixás evocados nas duas obras. Há um itan (narrativa mítica iorubá) que conta de uma passagem onde Iansã, revoltada, decide fugir de Xangô, seu então esposo. Para tanto, ela pede a ajuda de Exu, que, por meio de um encantamento, a transforma em borboleta, fazendo com que o rei de Oió não a encontrasse.
No entanto, é outro itan que Carlos toma como inspiração para o título de sua dramaturgia. Certa feita, Ogum descobriu um segredo de Iansã: sua segunda pele e seus chifres, que a transformavam em búfalo. Escondendo os artefatos, convence Iansã a casar-se com ele e a leva para casa, garantindo a ela que seu segredo permaneceria a salvo. Embriagado por suas outras esposas, enciumadas, revela para elas essa natureza animal de Iansã. A orixá, então, encontra suas peles e vinga-se, atacando e matando todas as mulheres. Ela decide voltar a viver na floresta, mas deixa seus chifres com os filhos para que, em caso de perigo, eles possam chamá-la para o resgate.
Iansã, entre o búfalo e a borboleta: em Cárcere, as irmãs Maria dos Prazeres (Dalma Régia) e Maria das Dores (Jucimara Canteiro) não trazem exatamente essas duas representações, mas elas podem servir de ponto de partida para a reflexão. Régia é quem torna-se búfalo nas cenas de caráter ritual, de evocações e culto à orixá. E é também a sua Maria que parece carregar na trajetória a liberdade da floresta, o encarceramento da casa (e do casamento, talvez) e a necessidade da fúria animal como revide. Ainda assim, sua vingança é também a festa.
A narrativa de Cárcere é centrada na lida de Maria das Dores com o aprisionamento de seu filho, que ela considera inocente. Em suas dificuldades, talvez esteja ali a faceta da borboleta que sutilmente voa com o vento – mas que, diferente do itan, não passa incólume pelas dificuldades da vida. E aqui há uma dobra interessante ao se considerar o trabalho anterior do grupo: é como se o jovem preso pudesse ser o mesmo Cerol de (In)justiça. Depois do julgamento, a pena – e os tantos que acabam punidos no entorno de uma única pessoa.
Assim, esteticamente há também espelhamentos das escolhas cênicas – algo esperado e a ser celebrado em uma companhia que desenvolve há duas décadas pesquisa continuada na criação teatral – como duas linhas de força muito bem delineadas na direção de Rocha: cenas focadas na construção imagética do discurso, da crítica e da narrativa, fundamentalmente performativas; e outras onde uma interpretação orgânica e ações sutis fazem saltar aos olhos as imagens e histórias contidas nas palavras da bonita dramaturgia de Carlos.
O texto navega entre pérolas poéticas, sínteses épicas e diálogos cotidianos. Enquanto a cenografia de Eliseu Weide constrói uma espécie de navio negreiro de gaiolas, a dramaturgia terreiriza os corpos que forçadamente cruzaram o Atlântico Sul: em diáspora, cada um deles seria assentamento. O corpo de uma mulher, assentamento do vento de Iansã.
E que tenhas o corpo: a tradução do termo jurídico Habeas corpus, comumente escutado no noticiário brasileiro, é por si só semente de sentidos. Cárcere carrega consigo contornos feministas, e o debate em torno da autonomia sobre o próprio corpo perpassa diversas violências ao longo da narrativa – das vexatórias revistas para visitar pessoas presas à ameaças de feminicídio.
A Companhia de Teatro Heliópolis parte da perspectiva das vidas dessas Marias (duas entre tantas) para refletir sobre o encarceramento em massa do nosso país, fundamentalmente das populações pretas, pobres e periféricas. O fato da obra trazer consigo um nome duplo parece apontar para o nó de como abordar a questão trazendo à tona o recorte de gênero – no que diz respeito à quem espera do lado de fora, e visita, e cuida, e ora – ao mesmo tempo em que também traz para a cena o que acontece dentro.
O galpão da Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho torna-se então um duplo; a cenografia de Weide traz materialidades realistas – uma mesa, uma cadeira – e também signos metafóricos, como gaiolas, e representativos, como a grade da prisão. A iluminação de Rocha e Toninho Rodrigues faz de tudo Cárcere: são celas e celas, de tamanhos e significações distintas.
A música – primorosa – segue sendo camada fundamental do trabalho do grupo: sob a direção musical de Renato Navarro (com assistência de César Martini), os musicistas Alisson Amador (percussão), Amanda Abá (violoncelo), Denise Oliveira (violino) e Jennifer Cardoso (viola) executam a trilha ao vivo, desenhando as atmosferas e ditando o andamento das cenas.
Nas partículas coreográficas (Érika Moura assina o estudo da prática corporal e a direção de movimento), dança-se também a brutalidade e a fúria. Imagens introduzem narrativas, comentam discursos já visitados ou antecipam o que virá; por vezes surgem composições que remetem à tableaux vivants, principalmente em cenas que se passam na cadeia. Ali, há pouco espaço para o afeto: o elenco masculino (Antônio Valdevino, Danyel Freitas, Davi Guimarães, Jefferson Mathias e Walmir Bess) traz a força da violência que permeia quase todas as suas relações, ainda que por vezes tente-se irromper a sutileza.
Enquanto isso, do lado de fora, as Marias de Régia e Canteiro ganham a companhia de uma comadre das irmãs, interpretada por Priscila Modesto, e da filha de Maria dos Prazeres (na ficção e na vida real: Régia e Rocha são os pais de Isabelle Rocha). Ali, ainda que diante das dificuldades de formas outras de encarceramento e atravessadas por momentos de denúncia, tristeza e raiva, o que reina é o autocuidado: a feitura de um bolo, o pentear de um cabelo, o espaço possível até para o riso. O revide é também a vida.
A estrutura de Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos traz consigo uma espécie de cisão entre o masculino e o feminino, talvez enquanto possibilidade de trazer uma abordagem multifacetada do cárcere e das vidas que o habitam e o circundam; de deixar bem definidos os contornos e os ângulos a partir dos quais se observa a ação. Assim, ainda que acabe por reiterar certos papeis de gênero, o faz de forma a traçar uma representação tristemente fiel da realidade de periferias urbanas do país.
Há ainda o espaço para depoimentos das personagens; dos homens presos, de policiais, de testemunhas. Em um deles, o rapaz conta da primeira vez que foi levado para fazer uma visita à penitenciária: ao olhar o edifício da cadeia, pensou que seu pai vivia em um palácio.
Em (In)justiça, a esperança estava na inocência da criança: a presença do garoto Gustavo Rocha – irmão mais velho de Isabelle – servia de contraponto às tantas violências enumeradas, quase como um lembrete de que o futuro virá. Em Cárcere, à criança resta dançar junto de sua mãe-búfalo, evocando ao lado dela todos os nomes do vento para que este venha rasgando tudo o que aprisiona e apequena vidas.
* A possibilidade de se pensar (In)justiça e Cárcere como um díptico e a reflexão em torno das questões feministas da obra foram ideias disparadas a partir de uma breve conversa informal com Maria Fernanda Vomero, provocadora cênica do processo de pesquisa, no dia da estreia do espetáculo.
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ficha técnica Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos Encenação: Miguel Rocha. Assistência de direção: Davi Guimarães. Texto: Dione Carlos. Elenco: Antônio Valdevino, Dalma Régia, Danyel Freitas, Davi Guimarães, Isabelle Rocha, Jefferson Matias, Jucimara Canteiro, Priscila Modesto e Walmir Bess. Direção musical: Renato Navarro. Assistência de direção musical: César Martini. Musicistas: Alisson Amador (percussão), Amanda Abá (violoncelo), Denise Oliveira (violino) e Jennifer Cardoso (viola). Cenografia: Eliseu Weide. Iluminação: Miguel Rocha e Toninho Rodrigues. Figurino: Samara Costa. Assistência de figurino: Clara Njambela. Costureira: Yaisa Bispo. Operação de som: Jéssica Melo. Operação de luz: Viviane Santos. Cenotecnia: Leandro Henrique. Provocação vocal, arranjos e composição da música do ‘manifesto das mulheres’: Bel Borges. Provocação vocal, orientação em atuação-musicalidade e arranjos - percussão ‘chamado de Iansã’ e poema ‘Quero ser tambor’: Luciano Mendes de Jesus. Estudo da prática corporal e direção de movimento: Érika Moura. Provocação teórico-cênica: Maria Fernanda Vomero. Provocações: Bernadeth Alves. Comentadores: Bruno Paes Manso e Salloma Salomão. Provocação de performatividade: Carminda Mendes André. Mesas de debates: Juliana Borges, Preta Ferreira, Roberto da Silva e Salloma Salomão. Orientação de dança afro: Janete Santiago. Designer gráfica: Camila Teixeira. Fotos: Weslei Barba. Assessoria de imprensa: Eliane Verbena. Direção de produção: Dalma Régia. Produção executiva: Davi Guimarães, Miguel Rocha e Leidiane Araújo. Idealização e produção: Companhia de Teatro Heliópolis. serviço Espetáculo: CÁRCERE ou Porque as Mulheres Viram Búfalos Com: Companhia de Teatro Heliópolis Temporada: 12 de março a 5 de junho de 2022 Horários: sexta e sábado, às 20h, e domingo, às 19h Ingressos: Pague quanto puder (público em geral) e Grátis (estudantes e professores de escolas públicas). Ingressos online: Sympla - https://www.sympla.com.br/produtor/companhiadeteatroheliopolis Duração: 1h45 min. Classificação: 14 anos. Gênero: Experimental Local: Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho Sede da Cia. de Teatro Heliópolis Endereço: Rua Silva Bueno, 1533, Ipiranga. São Paulo/SP http://ciadeteatroheliopolis.com/ Facebook - @companhiadeteatro.heliopolis | Instagram - @ciadeteatroheliopolis
Salve majestades. Sou fotógrafo e aluno da SP Escola de Teatro, Iluminação Cênica. Assisti duas vezes, chamei meus contatos no zapzap e redes sociais. Salvo equivoco, a crítica na segunda linha faz menção a texto presente neste canal, mas não informa o link: “O texto que reflete em torno da obra no ruína acesa traz em seu nome uma súplica” Ou o mesmo está embutido no hiperlink da frase “olhai por nós, Xangô”? No mais, parabenizo a crítica. Texto integral com citação da fonte, compilado e publicado no blog Cabeças Falantes. Espero estar ajudando a fortalecer resistências, a pavimentar horizontes: https://tamboresfalantes.blogspot.com/2022/04/companhia-de-teatro-heliopolis.html
Salve majestades. Seja seu dia e tempo existencial iluminado, iluminante; interiormente ensolarado, ensolarante. Na humildade e com todo todo respeito, um ignorante sexagenário em formação. Resido no quilombo periférico da COHAB Cidade Tiradentes, extremo leste paulistano. Além de escrevedor e fotógrafo, sou aluno da SP Escola de Teatro, Iluminação Cênica e curso Letras ead/UNIVESP. Assisti a peça duas vezes, chamei e divulguei para os meus contatos no zapzap e redes sociais e pretendo assistir mais outras vezes, se possível for. Salvo equivoco, a crítica na segunda linha faz menção a texto presente neste canal, mas não informa o link: “O texto que reflete em torno da obra no ruína acesa traz em seu nome uma súplica” Ou o mesmo está embutido no hiperlink da frase “olhai por nós, Xangô”? No mais, parabenizo a crítica. Texto integral com citação da fonte, compilado e publicado no blog Cabeças Falantes = Arte, Cultura, Informação, Publicidade Comunitária. Espero estar ajudando a fortalecer resistências, a pavimentar horizontes. Se cuidem, nos cuidemos, Riquezas. Voe. Click, Click, Click : https://tamboresfalantes.blogspot.com/2022/04/companhia-de-teatro-heliopolis.html
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boa tarde, Oubi Inaê Kibuko! salve sua força! agradeço pela leitura, pelas palavras e pelo compartilhamento. quanto à crítica de “(In)justiça”, está mesmo no hyperlink que carrega o título do texto: “olhai por nós, Xangô”. aqui, o link direto: https://ruinaacesa.com.br/injustica/
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