o documental e as trincheiras da memória
crítica de “Campo Minado” (“MINEFIELD”), de Lola Arias, apresentado na 5ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
Em uma narrativa que se estrutura em uma forma que por vezes parece de uma conferência, “Campo Minado”, com direção e dramaturgia de Lola Arias, traz para a cena seis veteranos da Guerra das Malvinas. Eles conversam, entre iguais, velhos inimigos, documentos e, fundamentalmente, com a própria memória e identidade.
A guerra, um grande documento do real, serve aqui como dispositivo para três argentinos e três britânicos revisitarem e de certo modo reconstruírem sua experiência não apenas daqueles dois meses de batalha, mas também de sua trajetória rumo a ela e o que permanece até hoje. Dividida em quadros com títulos diversos, a encenação começa apresentando quem são aquelas pessoas – como se trazendo para a cena suas audições para os papeis.
A obra transita por criações ficcionais que movimentam o que há de biográfico. Os seis representam alguns papeis, como um apresentador de TV e, mascarados, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e o presidente militar argentino Leopoldo Galtieri. A inserção dos líderes nacionais dos países envolvidos no confronto abre o campo das percepções político-sociais como outra dimensão do espetáculo.
É curioso, na revelação da ligação de cada um dos povos com a questão Falkland-Malvinas, pensar que, ao mesmo tempo que para Thatcher a vitória ajudou a consolidar sua segunda vitória eleitoral e para Galtieri a derrota precipitou o final da ditadura militar argentina, é na manifestação popular dos derrotados que as Malvinas importam mais. Em dado momento, num debate direto entre os argentinos e britânicos de “Campo Minado”, revela-se que no Reino Unido a Guerra das Malvinas não é estudada – ainda que tenha sido a última “guerra a moda antiga”, em termos semelhantes ao utilizado pelo veterano – ao passo que o slogan “las Malvinas son Argentinas” é até hoje visível por todo o país latinoamericano.
Talvez assim, de maneira quase orgânica, para além de toda a exploração da memória e dos relatos singulares apresentados por aqueles seis ex-combatentes, na costura cênica de Arias, se escancare concretamente o pensamento colonialista que, ainda que imperceptível para o portador, parece incrustado em sua subjetividade.
Não se trata de ignorar, aqui, a potência dos dolorosos discursos também dos vencedores – um dos britânicos se exalta ao declarar que ninguém se importa com seus mortos – mas soa inevitável refletir a partir deste paradigma. Ainda mais com a presença de Sukrim Rai entre os veteranos do Reino Unido. Rai lutou ao lado dos Gurkha, soldados de origem nepalesa e/ou indiana recrutadas pelo exército britânico. Até 2006, veteranos destas tropas não tinham o direito de viver na Inglaterra.
Em uma cena que parece ganhar tons de exotismo, Rai executa sua dança com o Khukuri, uma tradicional faca nepalesa utilizada pelos Gurkhas, enquanto os demais narram a sua história. Sua inadequação é explorada de maneira eficaz por Arias durante todo o espetáculo. É uma escolha poderosa encerrar “Campo Minado” – depois de um agressivo rock composto pelos veteranos – com Rai abrindo seu diário e lendo um trecho em sua língua natal, sem legendas. Ainda que muito tenha sido dito e a costura dramatúrgica se encerre, algo permanece em aberto. A obra parece assim evidenciar para o público a incapacidade de dar conta de tamanhas demandas abertas pelo processo biográfico e documental.
A apresentação de documentos, sejam eles fotos, revistas, vídeos, gravações e demais materiais, recheia e embasa o trabalho. Potente é também o trânsito entre os diversos tempos: os seis veteranos não apenas se lembram da guerra e de suas consequências, mas se abrem também acerca de suas impressões durante os períodos de ensaio. No depoimento de Marcelo Vallejo a David Jackson (no papel de um psicólogo – profissão atual do britânico), um dos momentos mais densos do espetáculo se revela. Vallejo fala sobre o ódio que sentia ao simplesmente ouvir a língua inglesa; afirma que pensava que ao ver um destes antigos inimigos teria vontade de agredi-lo. Mas que hoje, está até aprendendo palavras em inglês.
O orgulho patriótico e a afirmação da identidade nacional parece estar muito mais vinculado aos argentinos – Ruben Otero, que já se apresentou em Londres com sua banda cover de Beatles, se defende das “acusações” de cantar em inglês (baterista, faz as partes de Ringo Starr) ostentando sua camiseta que diz que as Malvinas são argentinas. A improvável banda binacional, além da música autoral que encerra o espetáculo, também se junta em outro momento para cantar “Get Back”, do quarteto de Liverpool. Nada mais apropriado: “Get back to where you once belonged”.
Há a tentativa de se aprofundar nas trincheiras a serem escavadas no processo de reconstrução da memória. Arias, com experiência em trabalhos que sobrepõem realidade e ficção, trabalha de maneira responsável com as lembranças trazidas à tona. Costurando a dramaturgia habilmente – sem abrir mão da autoralidade do próprio discurso – também dirige estes seis não-atores na composição de potentes imagens. Em conjunto com as projeções, a encenação ganha assim um dinamismo muito bem-vindo.
Encarando o processo de criação da obra como um tempo para aquelas pessoas olharem para trás e revisitarem lembranças que talvez preferissem esquecer, somos apresentados não apenas a dois lados de um confronto, mas às muitas realidades que uma guerra possui. Causos de quartel em oposição à denúncias de tortura; histórias de piedade confrontadas com cadáveres desmembrados. “Campo Minado” assume a enorme dimensão do documento-guerra e parte de maneira intrigante das memórias-trincheiras de alguns que a viveram.