autópsia de si (ou não há cadáveres além do nosso próprio)
crítica de “Branco: o cheiro do lírio e do formol”, de Alexandre Dal Farra e Janaina Leite
foto de Bob Sousa
Quando um grupo formado apenas por brancos se propõe a discutir o racismo e, como escolha ética e estética, não convida artistas negros para efetivamente participar da montagem – visto que aos provocadores coube apenas, como o nome diz, a provocação; não há espaço, em cena, para “tréplicas” sobre a resposta do coletivo à elas – isso já aponta para um caminho muito bem definido e um norte, novamente ético e estético, para a proposta.
Esse texto não pretende discutir as questões estruturais e concretas, ou seja, o racismo possivelmente implícito em uma decisão deste tipo, mas sim, suas implicações na encenação de “Branco: o cheiro do lírio e do formol”. Não por elas não serem pertinentes, mas pela tentativa de realizar uma análise crítica da obra enquanto realização artística – ainda que absolutamente inserida e indissolúvel no contemporâneo. (E talvez faça parte do privilégio branco – tanto meu quanto da peça – poder fazer esse tipo de escolha.)
Alexandre Dal Farra assina as dramaturgias levadas à cena. Não é novo em seu trabalho a presença de uma violência que insiste em não se envergonhar de si; a violência do mundo que nos circunda é potencializada em sua escrita e nem sempre se desvela em outros horizontes possíveis. Dizer que o texto e, por consequência, a obra – com direção de Dal Farra e Janaina Leite – é racista não é difícil. No entanto, parece haver, no mínimo, na própria realização do espetáculo, a abertura para um maior campo de discussão – em oposição à uma taxação simples.
“Branco: o cheiro do lírio e do formol” se estrutura em três camadas, mais ou menos ficcionais. A fábula básica da encenação nos apresenta uma família – um menino, seu pai e sua tia – quase bestializada, mas ainda assim passível de existir, discutindo sobre uma propriedade, entre outras coisas. Há uma segunda camada, depoimental, onde os dois atores e a atriz se revezam em um microfone posicionado em frente à uma câmera; todos assumem um “eu” único na construção da narrativa, que fala sobre o processo de criação do espetáculo. A terceira camada é a recuperação de cenas de peças escritas e abandonadas durante tal processo, além de trechos de e-mails e conversas com os provocadores negros.
Dal Farra e Leite, com André Capuano e Clayton Mariano, não são artistas ingênuos. Pelo contrário – sabiam, desde o início, o terreno pantanoso onde escolheram, por algum motivo, pisar. Ao mesmo tempo, a contínua transformação do espetáculo – seja no processo de criação, onde, como demonstrado em cena, foram escritas duas peças, cujos fragmentos levados ao palco revelam a dificuldade encontrada ao longo do caminho; seja no encontro da obra com o público: da estreia, dentro do MITsp, à uma das últimas apresentações da temporada, diversos cortes foram realizados, além de alterações textuais e revelação de procedimentos dramatúrgicos – nos conta que eles também não estavam tão certos de como lidar com as questões que seriam levantadas.
Este “como lidar” pode ser visto como procedimento central do espetáculo. É um racismo em procedimentos, uma descoberta da própria branquitude na impossibilidade de falar do outro enquanto presença. E se o outro é ausência, posso me isentar de buscar compreendê-lo? Resta à mim só a lembrança do cheiro de lírio e do formol da sala de velório já sem cadáver?
É como se não restasse mais um campo de ação possível a não ser desvelar estas mortes. Esclarecer – e aqui, também embranquecer – esse “não estar”, como se o único cadáver que me preocupa é o branco: o do pai ficcional, o queimado na fogueira, o meu inevitável futuro…
Não por acaso, a voz – e a presença ausente – do negro vem sempre junto de um tom assertivo, quando não violento, quase como que ameaçando a existência do branco como ele é. O medo do branco em cena é o medo de errar frente ao outro desconhecido. É a necessidade – apontada em áudio com voz off de Eugenio Lima – de sermos, nós, brancos, Santa Joana dos Matadouros. Mas nós não precisamos descer aos matadouros: eles estão em cada um de nós.
Tal percepção é desagradável e é o desagradável que permeia toda a encenação. Os excelentes atores não estão confortáveis em nenhum momento; essa exposição, por vezes constrangedora, é perceptível no público que, ao término, nem sabe bem como reagir. Há, ao mesmo tempo, uma insistência em destrinchar o tema e um mea culpa por estar fazendo isso dessa maneira. Era inevitável que, a partir da proposta, a obra se consolidasse nesta direção: na constante revelação de procedimentos, é a afirmação do fracasso deste coletivo em falar no racismo sem ser autorreferente que se explicita. Não está nada resolvido; nem na obra, nem no mundo.
Da perspectiva do impossível de trazer tal questão à tona, os quatro artistas moldam suas próprias branquitudes em conflito, e elementos da encenação constroem símbolos nesta direção: a espuma branca, raivosa, como um vômito racista, incontrolável e absurdo, quase não percebido por quem o expele; a máscara branca – uma “whiteface” grotesca – é resultado final desta composição da branquitude, uma exteriorização da descoberta de si próprio como opressor.
E o que fazer com essa descoberta? Dal Farra, Leite, Capuano e Mariano não nos apontam caminhos – nem deveriam, pela trajetória da obra. O que fica, então, é que não basta buscar em si a presença do outro; tampouco sua ausência. É necessário estar preparado para realizar uma autópsia em si próprio e aceitar que, para que algo além da lembrança do lírio e do formol fique em nós, seja o nosso próprio cadáver na sala de velório.