teatro

chegou Godot e ele é um cão abandonado no poço

crítica de Com os bolsos cheios de pão, de Matéi Visniec, com direção de Vinicius Torres Machado.

GODOT: Falar de quê? Falar por quê?

BECKETT: Falar. O mais importante é falar. Vamos falar de tudo.

GODOT (olha em torno, assustado, a multidão sentada na rua): Meu deus, o que é que eu vou dizer?

(O último Godot, de Matéi Visniec, trad. Roberto Mallet)

Em 1987, ano em que deixou a Romênia de Nicolae Ceaușescu para viver na França, o dramaturgo Matéi Visniec escreveu O último Godot, dedicada a Beckett e ao próprio personagem (ausente), para dizer-lhe adeus, conforme afirma em pósfacio que acompanha o texto da obra, publicada no Brasil em 2012 pela É Realizações. A editora tem a intenção de lançar o teatro completo de Visniec em português; em 2017, O último Godot foi republicado em Os Bolsos Cheios de Pão e outras peças curtas

Com os bolsos cheios de pão foi escrito em 1984 – ou seja, três anos antes do autor separar-se de Beckett. Na sinopse da obra em inglês, presente no site do próprio Visniec, há uma associação direta entre seus personagens (Homem de Bengala e Homem de Chapéu) e a dupla Vladimir e Estragon.

Mas aqui, se há um Godot, ele é o cão abandonado no fundo do poço. Na encenação de Vinicius Torres Machado, em cartaz no Sesc Pompeia, Edgar Castro e Donizeti Mazonas atuam sobre uma plataforma cilíndrica (a cenografia é de Eliseu Weide) e a árvore seca beckettiana é substituída pelo palco desnudado: aproveitando a arquitetura do teatro de Lina Bo Bardi, a plateia ímpar é tornada prolongamento da cena; banhada pela iluminação de Wagner Antonio, acumula sentidos em seu vazio.

Em seu artigo A personagem contemporânea: uma hipótese, o professor e dramaturgo Luís Alberto de Abreu aponta que, ao lado de Kafka, Beckett forneceu uma excelente matriz para o estudo de elementos de composição da personagem contemporânea, enquanto também ressalta que, em nossa realidade contemporânea, a alienação de si mesmo (…) talvez tenha se aprofundado ainda mais.

O Homem de Bengala e o Homem de Chapéu de Visniec, com suas consciências fragmentadas, poderiam ser observados a partir deste prisma: seres perplexos que, no entanto, agem. Uma ação descontínua, sem objetivo, sem sentido e, como toda ação teatral, dramática, violenta. Vladimir e Estragon cansaram-se de esperar Godot e, sem memória e, conseqüentemente sem valores, puseram-se em movimento e cruzam as ruas, ora tomados de furor, ora de passividade, ora perplexos, ora assaltados por compulsões que não conseguem conter.

Diante da percepção de que um cachorro está sofrendo no fundo do poço, passam a conjecturar; discutem suposições e pressupostos, vertiginosamente tentam – e continuamente fracassam – compreender a situação, debatem proposições… e nada fazem. A ação de Com os bolsos cheios de pão é violenta por ser vazia, quase ausente, mas ainda ali, de algum modo pulsante; o falar, falar, falar e no fundo não dizer, quase um ato antiperformativo.

Quando o público entra no teatro, Castro e Mazonas já estão em cena; vê-se suas silhuetas em meio à fumaça e ao contraluz, marcando desde o início a narratividade do trabalho de Antonio. Chamam a atenção os quatro indicativos sobre as portas, para o caso de emergências: em vermelho, saídas. Os atores não chegarão nem perto delas – literal e metaforicamente. Sobre o espaço reduzido do cilindro, o Homem da Bengala e o Homem do Chapéu discutem em um jogo precisamente marcado de composições estáticas e gestualidades que dançam.

Por uma hora, olham para o poço como quem não percebe que o abismo os olha de volta. Ressoam as perguntas do artigo de Abreu: Quais as possibilidades de redenção de personagens desse tipo? Que caminhos podem indicar nesses personagens a restauração da humanidade perdida? Onde está a raiz do erro? As respostas não se encontram em Com os bolsos cheios de pão. 

A dramaturgia de Visniec opera uma espécie de giro desesperador em torno de si própria, um vórtice que te suga para o abismo, para o fundo do poço, para este teatro vazio recortado pela iluminação e pelos corpos e vozes de Castro e Mazonas. Machado compõe a cena consciente de que as saídas não estão tão sinalizadas como os letreiros sobre as portas. 

A trilha sonora de Pedro Canales traz ruídos, dissonâncias, sons abafados ao fundo, desenhando também a condição daquela dupla, que será evidenciada ao longo da encenação. Ao restringir a dimensão da movimentação dos atores ao diminuto cilindro cênico, contrapõe-se não apenas a amplitude do espaçoso teatro, mas também o alcance de suas possibilidades de ação dentro da ágora. Com os bolsos cheios de pão é uma fábula do desencanto, onde a conclusão de Visniec parece reverberar, ironicamente, a primeira fala de Estragon que, depois de desistir, novamente, de tirar sua bota, conclui, exausto: nada a fazer.

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ficha técnica
Com os bolsos cheios de pão

Texto: Matei Visniec 
Tradução: Fábio Fonseca de Melo 
Direção: Vinicius Torres Machado 
Elenco: Edgar Castro e Donizeti Mazonas 
Trilha Sonora: Pedro Canales 
Cenário e Figurinos: Eliseu Weide 
Iluminação: Wagner Antonio 
Assistente de Direção: Rafael Costa e Jessica Mancini
Produção Executiva: Jota Rafaelli MoviCena Produções