o esforço do desmanche, o desnudar da leveza
crítica a partir de Bípede sem Pelo, de Alexandre Américo (RN). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Alexandre Américo (RN) corre pelo espaço enquanto o público entra e, entre desvios mútuos, acomoda-se em seus lugares. Os passos ritmados em seu movimento circular compõem uma espécie de música. Em Bípede sem Pelo, os sons que fazem a obra dançar vêm de seu corpo; da pisada, da respiração, de seus gestos e das relações que se dão em sua integração com as materialidades presentes na cena. Difícil dizer se é Américo que as ativa ou se são elas que os ativam.
Tudo que habita Bípede sem Pelo parece tanto. O tônus de Américo, entre um corpo que corre e um corpo que espasma. A caneca com água e seus gestos de lavagem. O prato com espécie de óleo ou manteiga natural com o qual se besunta. O tempo do ritual, o tempo da festa, o tempo do trabalho.
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Na relação que constrói inicialmente com a palha, Américo bate cabeça pro material até que eles se tornam um. Como que em gesto de purificação, a gira cênica parece começar sob as bênçãos de Obaluaê e doença e cura coabitam esse corpo-princípio em movimento. Espasmos. Há muito esforço neste desmanche, nesta construção integrativa de desconstrução.
Torcer a ideia do animal humano, do Bípede sem Pelo, diz a sinopse do trabalho. É isso que somos? Um animal que caminha sobre duas patas e não é totalmente coberto por pêlos? A perspectiva evolucionista é questionada por Américo de modo que talvez o que nos diferencie dos outros animais seja aquilo que nossas manifestações culturais fazem de nossos corpos – e também o que a colonização e o pensamento moderno produziram sobre eles. Aliás, Américo parece se interessar pouco por cisões; seja de mente e corpo, seja de humanidades e não-humanidades, seja de nós e natureza.
Depois da palha, a torção dos tecidos. Na cabeça, pêlos, entre o que pode se ler como uma peruca e o que remete efetivamente à representação de um animal selvagem. Nos gestos circulares – os materiais torcem-se sobre si próprios, os materiais torcem-se em torno de Américo – uma composição espiralar se lê entre o mundano e o místico. Conforme os tecidos vários se acumulam, costurados, formam um uno diverso em suas diferentes composições, origens, usos, significados, trajetórias, histórias e vidas inscritas em cada parte que forma o todo.
Enquanto tornam-se parte deste corpo-mais de Américo, algo de encantado, de entidade, de corpo-além, se percebe em construção ao mesmo tempo em que há algo da labuta cotidiana e do mundo do trabalho que não se pode apagar. Nas variações de tônus do intérprete e no preciso encadeamento dessas partículas rito-coreográficas, uma atmosfera do transe se instaura em ação e fruição.
E então, nesse corpo-todo que se põe a como que desfilar, Bípede sem Pelo – onde há muito de mistério mas também tudo parece diante de nós – deixa ainda o espaço para revelações sutis de matérias-outras. O grande esforço do desmanche é coroado pela integração de uma manta que remete aos caboclos de lança com suas cores brilhantes e Américo gira na gira que passo a passo construiu-movimenta.
Daí, o chão. Uma pequena morte advinda desse tanto que se aciona no acúmulo, na sobreposição. Américo, sendo em cena muito-mais-que-bípede-sem-pelo, absorve tudo. De volta às duas pernas, em seu corpo-manifestação habitam e celebram partículas de danças e festas da cultura popular destas terras, de suas raízes. Lantejoulas cuspidas como que na transmutação de uma violência em carnaval. Lantejoulas por seu corpo-tanto nu: Bípede sem Pelo é vida morte vida; o esforço do desmanche e o desnudar da leveza.
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serviço
Bípede sem Pelo
Com Alexandre Américo (RN)
De 7 a 30 de junho de 2024.
Sextas e sábados, às 20h. Domingos e feriados, às 18h.
Duração: 60 minutos.
Local: SESC AVENIDA PAULISTA/ Estúdio (4º andar).
Classificação indicativa: 16 anos.
Ingressos: R$40 (inteira), R$20 (Meia) e R$12 (Credencial plena).
ficha técnica
Bípede sem Pelo
Dança e Coreografia: Alexandre Américo
Direção: Pedro Vitor
Interlocução Cênica: Laura Figueiredo
Interlocução Coreográfica: Elisabete Finger
Cenografia: Ana Vieira e Jô Bomfim
Luz: Camila Tiago
Montagem de luz: David Costa
Operação de Luz: Nicholas Matheus e Pedro Vitor
Fotografia divulgação: Carol Pires, Cayo Vieira, JAN e Maria Antônia Queiroz
Design Gráfico: Yan Soares e Maria Antônia Queiroz
Produção: Listo Produções - Celso Filho e Corpo Rastreado - Lucas Cardoso
Comunicação: Paulo Nascimento
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes