contra o esquecimento, cantar bertolezas
crítica de “Bertoleza”, da Gargarejo Cia. Teatral
[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]
No início de O Cortiço, Aluísio de Azevedo apresenta dois personagens: João Romão e Bertoleza. O primeiro é um ambicioso português que almeja subir na vida, e percebe na negra escravizada uma possibilidade de negócio. Forjando uma carta de alforria e utilizando-se de seu dinheiro para os primeiros investimentos em um terreno, torna-se próximo de Bertoleza, aproveitando-se também de sua mão-de-obra e vivendo junto à ela — que aceita, “porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua”, descreve o autor.
Ao longo do romance, publicado em 1890, o nome da companheira de João Romão é utilizado diversas vezes apenas para fazer referência a ele. Na trajetória da obra, que acompanha o desenvolvimento do cortiço do português, Bertoleza só chega ao centro da narrativa quando torna-se um empecilho para a ascensão social de Romão.
Antes a solução dos problemas de João Romão, com o dinheiro poupado para sua alforria, a companhia no furto de materiais de construção e a incansável mão-de-obra, Bertoleza é agora um obstáculo a ser superado; uma vida que deve ser apagada, esquecida.
“E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.
— É exato! E a Bertoleza?… repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém ao comprido da alcova.” (O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, p. 147)
O questionamento “E a Bertoleza?” torna-se a questão fundante da adaptação da Gargarejo Cia. Teatral para O Cortiço. Aqui, a personagem é tornada central para que a história do romance de Aluísio de Azevedo seja recontada. Não obstante, a encenação subverte a intenção por trás da pergunta e amplia seu alcance temático para além da obra literária. A mudança radical no olhar lançado sobre a obra é percebida desde a escolha do nome da peça.
Bertoleza estrutura-se como espetáculo musical em que grito é canto. A obra, adaptada e dirigida por Anderson Claudir, parte da proposta de compreender a representação e as leituras desta personagem dentro de uma perspectiva histórica: Bertoleza representa o apagamento sistemático de uma parte da humanidade e, por consequência, dos feitos de indivíduos pertencentes à populações minorizadas — tendo, aqui, um nítido recorte de gênero e raça: é de mulheres negras que se fala.
Na primeira canção, no que se configura como prólogo da peça, o discurso e o posicionamento de Bertoleza ficam nítidos: a Gargarejo veio empretecer algumas questões; o coletivo, que é majoritariamente negro e periférico, toma para si a possibilidade de contar as próprias histórias e, desse modo, lançam luz à narrativas que antes reproduziam a exclusão.
Pluraliza-se, assim, a questão: e as (tantas) Bertolezas, cujas histórias nunca foram propriamente contadas e cujos legados são silenciados? No texto final da obra, assinado por Claudir e Le Tícia Conde (que também é responsável pelo dramaturgismo e pela poesia da obra), a narrativa do romance é entremeada pela presença didática e poética da memória de importantes — e pouco lembradas — figuras históricas brasileiras; todas mulheres negras.
Bertoleza compreende a potência — e o alcance — do formato musical para empreender, a partir disso, uma obra que toma a negritude como tema central. Se muitos críticos e analistas observam como o próprio cortiço é o personagem principal do romance de Aluísio de Azevedo, aqui a Gargarejo escolhe trazer Bertoleza como uma entre tantas mulheres negras pouco observadas.
Ainda dentro do prólogo, cartazes com nomes e rostos de diversas mulheres negras passeiam pelo palco. Ao final da coreografia, o verso revela a popularizada placa de rua que leva o nome de Marielle Franco. Mulher, negra, favelada, bissexual, socióloga, vereadora que foi brutalmente assassinada em 2018: é ela a primeira a ser lembrada, na forte interpretação de Palomaris.
Fica evidente, desde o início, uma acertada escolha de Bertoleza: a encenação é um musical que parece beber muito do teatro épico brechtiano. As atrizes (e, pontualmente, também os atores) são eminentemente narradoras, entrando e saindo dos papéis exigidos por cada situação — dramática ou não — e colocam-se, diversas vezes em primeira pessoa. Assim, a crítica sobre o que se representa está tanto nos comentários feitos diretamente quanto nas escolhas de composição de personagem.
A cenografia de Dan Oliveira é funcional: as estruturas de madeira desenham o esqueleto do cortiço quando necessário, mas também servem de níveis, que são utilizados com inteligência pela encenação. Nos figurinos, também de Oliveira, há uma referenciação pouco discreta à nossa atualidade dos signos escolhidos para representar os personagens brancos.
No elenco, o protagonismo é feminino. Não são muitos os personagens representados: Lu Campos, com uma bela voz e brilho no olhar, é Bertoleza, e Taciana Bastos, também assistente coreográfica do espetáculo, é Zulmira. Bastos também acompanha Palomaris, Ananza Macedo e Cainã Naira como narradoras, coro e comentadoras da narrativa.
Entre os homens, Bruno Silvério é o antagonista João Romão e Eduardo Silva compõe de forma ácida o personagem Botelho. David Santoza, Welton Santos, Gabriel Gameiro, Matheus França e Edson Teles compõem o coro masculino, responsável pelos instrumentos musicais — neste sentido, Teles se destaca pela versatilidade.
Assim, é mérito da encenação a insistência no discurso que propõe desde seu início; a compreensão de que talvez não baste apenas uma semente germinada para fazer brotar uma floresta. São muitas as necessárias. Ao colocar em cena a memória de Marielle Franco, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmino dos Reis, Antonieta de Barros e Dandara, é resgatada — e celebrada — a ancestralidade e a relevância do fenômeno diaspórico na fundação histórica e cultural do Brasil.
Além da presença das referências diretas à mulheres negras, seus feitos e pensamentos, também nas cenas dramáticas adaptadas de O Cortiço pode-se notar o trabalho de ressignificação de discussões da obra — além da inserção de problemáticas ausentes. Por exemplo, após a canção onde Zulmira fala de seus problemas e dificuldades — com certa ironia da encenação — um diálogo entre ela e Bertoleza, que ecoa também a memória do discurso de Sojourner Truth, debate, organicamente, a interseccionalidade e as impactantes diferenças entre as opressões sofridas por mulheres brancas e mulheres negras.
Dessa forma, Bertoleza alinhava forma e conteúdo de maneira pujante: o espetáculo é assertivamente didático sem abrir mão de uma estética cativante. A encenação parece compreender o que há de potente no formato musical sem fazer concessões quanto ao discurso que se pretende trabalhar.
Diferente de espetáculos que ao adaptar obras clássicas à luz de nossos tempos optam por transformar também seus finais, a Gargarejo Cia. Teatral escolhe manter o destino dado à Bertoleza por Aluísio de Azevedo. Porém, seu último ato de resistência — e talvez o único narrado no romance — é aqui ressignificado. Ressoam os tambores e se canta em iorubá. O grito em Bertoleza mantém-se canto, celebrando a vida de mulheres negras — presentes no palco, na plateia, no Brasil e no Òrun.