dar asas ao voo interditado de um alguém (vida mediada, cidade sitiada)
crítica de “O beijo no asfalto”, do Núcleo de Teatro de Rua do Pequeno Ato
foto de Ana Alexandrino
Nelson Rodrigues, sempre entre a acusação de moralista e de imoral, ao apontar seu olhar para as questões íntimas da família brasileira e suas mazelas conseguiu criar uma obra que – talvez infelizmente – ainda dialoga com nossos tempos atuais. Em “O beijo no asfalto”, onde muitos podem identificar como central na narrativa a questão da homossexualidade e da homofobia, que permeia o trato das demais personagens em relação à Arandir, há muito mais – e não que isso fosse pouco – em jogo.
A montagem do Núcleo de Teatro de Rua do Pequeno Ato, capitaneado pelo diretor Pedro Granato, tensiona a relação não apenas do público e do privado – que se dá no ato em si de localizar a encenação (assim como o atropelamento do início do espetáculo) na Praça Roosevelt, numa São Paulo cada vez mais à venda – mas também do indivíduo no choque direto com o coletivo. A ação individual, entre alguéns, torna-se de relevância geral a partir de interesses de outra ordem.
Escolhas de Granato são inteligentes para construir essa camada de leitura: enquanto algumas personagens são representadas por indivíduos, tendendo à uma construção mais complexa e profunda na interpretação (Fhelipe Chrisostomo se destaca como Arandir) que acaba por reverberar de outra maneira na comunicação com o público, outras, como o jornalista Amado Ribeiro e o delegado Cunha, sempre surgem na forma de coros; aqui, trata-se da representação de toda uma categoria – ou mesmo da instituição em si.
O coro também colabora na relação com o espaço aberto; seja na forma de uma composição com a cidade ou com a cena, é imprescindível que o diálogo com o entorno seja constante. Com o Viaduto Júlio de Mesquita Filho tornando-se cenário, São Paulo e seu movimento incessante podem engolir a encenação. No entanto, ainda que a obra por vezes fique circunscrita ao seu espaço cênico, os atores e atrizes não deixam de perceber o que acontece – sons e transeuntes são inseridos na obra de forma rápida e orgânica; mesmo se a cena está se passando em um ambiente privado na fábula, a linguagem épica do teatro de rua permite aos atores e atrizes jogarem também com o que está além de seu controle.
A cenografia de Diego Dac (que também está em cena) permite que diversos ambientes sejam propostos, além de se tornar dispositivo cênico – os grandes quadrados metalizados não apenas compõem espaços físicos, mas sugerem também atmosferas e imagens. As setas e a paleta de cores, presentes desde a identidade visual do cartaz até os figurinos, que ao mesmo tempo que se destaca também se insere absolutamente na realidade urbana, nos dá a impressão do movimento súbito mas também da interdição: trata-se de uma cidade que, ainda que cada vez mais acelerada, está sitiada.
Uma cidade onde os espaços públicos, quando não tolhidos, são cada vez mais vigiados e qualquer atitude inesperada de um indivíduo é colocada em cheque por uma coletividade cada vez mais desconfiada do outro. Se em um primeiro momento Arandir é vítima de um conluio ardiloso entre imprensa e polícia, a criação dos factóides se alastra de tal modo que os outros – e aí inclusa sua própria família – passam a se relacionar com as informações deturpadas mais do que com o próprio sujeito do fato.
Com toda uma cidade sitiada e cada um de nós vivendo nossas vidas mediadas, não há mais espaço para a relação direta com um alguém. Na cena final do espetáculo, com uma nova imagem proposta pela cenografia, Arandir parece por um momento buscar criar asas dentro deste movimento da cidade; assim como talvez o beijo no asfalto que inicia o espetáculo fosse também essa tentativa, o voo de um alguém sempre acaba, metafórica ou concretamente, interditado.