“Bacurau” é ontem, hoje e imaginário de um Brasil destroçado
crítica de “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]
(Escrevo esse texto ainda impactado pelo filme. É importante dizer, logo de cara: não sou crítico de cinema. A escrita aqui é de alguém que quer organizar o olhar e refletir sobre uma obra potente e complexa como Bacurau. Inevitavelmente, navego por spoilers.)
Uma cidade apagada do mapa, incomunicável. Misteriosos forasteiros. Estrangeiros com fetiche por armas antigas e contando corpos abatidos como pontos de um jogo. A premissa de Bacurau passa facilmente pela de um filme de terror. Sanguinolência e uma violência explícita cuja referência mais óbvia e próxima é de Quentin Tarantino.
O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, no entanto, ao se passar no “oeste de Pernambuco, daqui a alguns anos”, complexifica de tal modo essa proposta que parece redutor um primeiro impulso de dizer que fala sobre o Brasil de hoje. Bacurau, sem a soberba que poderia decorrer de uma pretensão tão grande, versa sobre tempos e processos históricos que remetem a outros períodos de nosso passado. Ao fazer isso, no entanto, não deixa de dialogar diretamente com nosso entorno e deixar pernas trêmulas na saída do cinema quando se pensa sobre o porvir.
A atmosfera tensa se estabelece quase que desde o início e perdura até o momento final. Desenvolvendo seu discurso de maneira evidente, o filme tem como grande potência não permitir que este nunca se coloque à frente da complexidade da obra. Assim, merecem destaque todas as camadas desta empreitada. O roteiro de Mendonça e Dornelles constrói a ação dramática a seu tempo enquanto faz inserções e citações precisas; a fotografia de Pedro Sotero compõe quadros de poesia e dureza. A direção de arte de Thales Junqueira sobrepõe os tempos que coabitam a pequena cidade invisível.
A sonorização, com engenharia de Nicolas Hallet e mixagem de Cyril Holtz, joga entre músicas que comentam a ação, enquanto a criativa trilha original de Mateus Alves e Tomaz Alves Souza desenha a tensão com certos ares de Ennio Morricone. Em certo aspecto, Bacurau é um faroeste cangaceiro do século XXI.
Não por acaso, a manchete do jornal focado em cena no Museu da História de Bacurau fala da ação dos volantes ao cangaço pernambucano. É uma das leituras possíveis do confronto presente no filme. O sugerido apoio do prefeito da cidade aos estrangeiros reforça a chancela da violência brutal e gratuita de grupos de extermínio pelo poder público. Também, dentro de uma casa vazia, a televisão noticia uma execução pública no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. No Brasil de Bacurau, a pena de morte é — também — constitucional.
Na resistência do povoado, os túneis também podem remeter à vitória vietcongue sobre o exército americano. São diversas as leituras possíveis, algumas até óbvias: nos argumentos do assassino da pequena criança, nada diferente do que se vê no Rio de Janeiro dos dias atuais. Reverberam massacres em escolas, sejam em Suzano ou na Nova Zelândia, além dos frequentes norte-americanos, e o pensamento fascista que enxerga o outro como mero objeto, alvo a ser abatido. Os nomes dos falecidos no cortejo final fazem referência quase direta à vítimas da violência. Mas há mais do que o país de hoje em Bacurau.
Cabe ainda apontar para o procedimento de atualização — ou reinvenção — da figura do cangaceiro. Na talentosa construção de Silvero Pereira, Lunga surge como o guerrilheiro do nosso século. Sua figura, intencionalmente fora da normatividade e da expectativa do que seria um líder do cangaço, entre os aplausos em sua chegada, chega a ser questionada por uma senhora; “que roupa é essa, menino?”. Dornelles e Mendonça Filho operam aí, então, a franca disputa pelo imaginário do masculino, do viril — e da maldade. O que se apresenta é uma organização de resistência que, entre a sobrevivência e a vingança, degola e exibe cabeças ao pé da Igreja.
Em cena que funciona como espécie de síntese da obra, Damiano — em trabalho seguro de Carlos Francisco — está nu, cuidando de suas plantas, macerando suas folhas. Os estrangeiros, com seus recursos tecnológicos, pontos eletrônicos e armas vintage por puro fetiche, pensam que irão surpreender o velho que vive isolado. No entanto, é a velha escopeta de Damiano que explode a cabeça de um dos assassinos, enquanto sua companheira Daisy (Ingrid Trigueiro), de seios nus, derruba a outra.
É como se até na perversidade aquela existência ancestral, das ervas e da terra sobrepujasse o inimigo. O medicamento fornecido pelo prefeito, talvez com a intenção do forte analgésico amansar o humor dos habitantes da cidade para o abate, é descartado por Domingas — na interpretação da sempre intensa e precisa Sônia Braga. Antes da batalha, é a semente de Damiano que é ingerida — e a fala de Plínio (Wilson Rabelo), entre a ironia e a franqueza, sugere que se trata de um psicotrópico.
A presença de Lia de Itamaracá como Carmelita é uma linda homenagem do filme à cultura popular. No momento de seu enterro, a imagem do caixão transbordando é água que inunda as secas. De brilho ofuscante, sua aparição impede Michael — na construção deliciosamente vilanesca de Udo Kier — de não ser capturado vivo pelo povo de Bacurau.
Tornando visível um Brasil historicamente apagado do mapa, Bacurau mira muitos horizontes. Sem dúvidas, traz referências de passados mais ou menos distantes para construir um diálogo assustadoramente direto com o momento atual. Porém, em sua complexidade que rejeita soluções fáceis e maniqueísmos tolos, estabelece-se como obra de arte impactante e aterradora. Entre sudestinos que se vêem estrangeiros da própria pátria, violeiros com palavras ágeis e neocangaceiros de facões impiedosos, resta apenas a possibilidade de disputar um imaginário destroçado pela cruel realidade — sem necessariamente se prender à ela.