dividir para confundir, conectar para lembrar
crítica de “Babylon Beyond Borders” (“Babilônia Sem Fronteiras”), coprodução entre Pequeno Ato (juntamente ao Sesc São Paulo), Market Theatre Lab, Harlem Stage e Bush Theatre
[english version available here: divide to confuse]
Encontra-se em Gênesis 11:1–9 a narrativa sobre a construção da torre de Babel; mito de origem que busca explicar as tantas línguas faladas no mundo. Se antes “a terra inteira tinha uma só língua e usava as mesmas palavras”, foi pelo empreendimento humano de “fazer nome”, por meio da construção de “uma cidade e uma torre que chegue até o céu”, que o Senhor notou que “nada os impedirá de fazer o que se propuserem”. E por isso, então, a humanidade foi dispersa por toda a terra.
Babel tem em sua raiz etimológica o significado de confusão, mistura. Como que limitados por nossa dispersão e incomunicabilidade, nunca realizaríamos empreendimentos maiores do que os divinos. E insistimos em construir altas torres, pelos mais distintos motivos; e seguimos observando o que acontece com elas.
Em “Babilônia Sem Fronteiras” (“Babylon Beyond Borders”), quatro teatros de pontos distantes do mundo se conectam, construindo pontes digitais para apresentar um espetáculo único. Transmitido simultaneamente para plateias em quatro países, essa Babel se mistura sem confundir. Joanesburgo, Londres, Nova Iorque e São Paulo. Há muito que pode ser estabelecido em relação a essas quatro cidades, seja por aproximação ou confronto.
Respectivamente, Mwenya Kwabe (Market Theatre Lab/África do Sul), Ruthie Osterman (Bush Theatre/Reino Unido), Pedro Granato (Pequeno Ato/Brasil) e Sarah Elizabeth Charles (Harlem Stage/EUA) concebem a obra. É importante notar que a encenação, múltipla, parece se apresentar horizontalmente; e ainda que haja um fio-condutor que alinhava toda a dramaturgia, há uma pluralidade nas linguagens e escolhas estéticas de cada localidade.
Em cada cidade, é eleita uma torre que serve como disparadora de metáforas e reflexões. São escolhas mais ou menos óbvias; mas mesmo no caso dos EUA e seu World Trade Center, é interessante a abordagem ao símbolo: Elizabeth Charles parte do 11 de setembro para refletir sobre suas consequências nas narrativas construídas a partir de então em relação ao estrangeiro.
Cada uma a seu modo, todas as torres falam desse outro; deste humano que, disperso pela terra e de volta à nossa Babel, chega com sua língua, seus costumes, sua cultura. A xenofobia relacionada aos fluxos migratórios da atualidade se desvela nos relatos acerca do incêndio da londrina Grenfell Tower; e o Bush Theatre alterna entre densas cenas narrativas acerca disto e outras repletas de ironia, versando sobre a ascensão da direita na Europa e declarações da primeira-ministra Theresa May.
May afirmou, em 2016, que “se você acredita ser um cidadão do mundo, você é um cidadão de lugar nenhum”. E a busca dessa Babilônia temporária, um território entre o presencial e o digital, o real e o ficcional, é precisamente pela queda das fronteiras; nem torres, nem muros: pontes.
Em uma feliz coincidência, é exatamente este o nome da torre sulafricana: Ponte Tower. Projetada como prédio futurista, acaba quase abandonada — fato que é tratado com certo humor pelo grupo de Joanesburgo. Trazendo relatos do lixo acumulado no local, desenha-se uma proposta de reflexão acerca de como se vê um empreendimento e o que de fato se faz dele.
No Brasil, Gloire Ilonde e Karina Buhr compõem o elenco dirigido por Granato. Buhr, um rosto conhecido por sua trajetória como cantora — além de atuar em espetáculos do Teat(r)o Oficina — compartilha sua origem familiar, dirige sua fala sem rodeios à questões políticas contemporâneas, canta e toca percussão. Ilonde, imigrante congolês, fala de sua vivência na Ocupação 9 de Julho, do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), de São Paulo, de testemunhar o incêndio e posterior desabamento do edifício ocupado no Largo do Paissandu; e também canta.
A sintética escolha de Granato por apenas dois atores contrasta com o grande coro britânico de mulheres do Bush Theatre e com o enérgico grupo sulafricano do Market Theatre Lab. No Harlem Stage (na realidade, a transmissão é realizada do estúdio Eletrik Indigo Sound), Elizabeth Charles é quem narra e canta, acompanhada de um músico. Essa diversidade nas escolhas estéticas acaba apenas por agregar camadas de reflexão sobre a proposta do espetáculo.
Durante as cenas projetadas no palco do Teatro Anchieta, é bonito observar Ilonde e Buhr assistindo. Como se ali a humanidade se reconectasse como una, ainda que por um instante, ainda que repleta de poréns e senãos. A música aparece como possibilidade de linguagem universal, cuja transmissão de sensações parece ultrapassar barreiras linguísticas e socioculturais.
Nos quatro pontos, discursos diretos se alternam com recursos estéticos. No Reino Unido, máscaras de Theresa May, coreografias irônicas e níveis de representação que alternam entre um realismo que flerta com o documental e divertidos tipos. No Brasil, em oposição ao discurso da encenação, a calma e constante construção de um muro — uma lembrança, na materialidade cênica, da realidade que nos circunda.
Em Joanesburgo, a inventiva utilização de engradados plásticos — que parecem caixas de feira — para montar diversos ambientes que situam variadas narrativas. O Market Theatre Lab apresenta-se quase como um contraponto — não é sobre quem chega lá e sua relação com o estrangeiro; mas sim da relação do seu próprio cidadão com o resto do mundo.
Nova Iorque é mais intimista; a escolha de canções de Elizabeth Charles para abrir e terminar o espetáculo propõe uma atmosfera de suspensão poética do cotidiano — operação pouco realizada no resto do espetáculo. “Babilônia sem fronteiras” carrega em si poesia e beleza, mas a dureza da realidade não a permite fazê-lo sem dor.
A busca pelo que transcende nossas fronteiras parte da torre bíblica como metáfora mas se costura por seu avesso: é essa dispersão pelo mundo, essa confusão de modos de existir, que pode se transformar em potência. Não se trata apenas das fronteiras estabelecidas por Estados, mas daquelas que estabelecemos cultural e socialmente, daquelas que nos impedem de ver o outro a partir daquilo que ele é e viveu. A partir das torres que construímos; lembrar das que teimam em desabar e das que teimam em não cair.
um comentário em “dividir para confundir, conectar para lembrar”