lusco-fusco
crítica de Autoexame de corpo de delito – cantata para adiar a morte, ideia original de Lucienne Guedes. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Entre o público e a primeira aparição de Lucienne Guedes, tijolos de vidro. Fora da sala Multiuso, caminhando pelo pátio entre os edifícios do TUSP e do Centro MariAntônia, a iluminação de Aline Santini mostra os contornos pouco nítidos da atriz, que caminha-dança, enquanto se escuta o piano tocado por Daniel Maudonnet. Transparência e opacidade e tudo que transita no campo onírico: em Autoexame de corpo de delito, na encenação de Eliana Monteiro, o sonho é base da teatralidade e da narrativa.
No título, pistas: a busca por vestígios de um crime cometido por si própria; a busca por vestígios que apontem qual seria o crime em questão. No subtítulo, cantata para adiar a morte, dá-se a ver forma e conteúdo. Ailton Krenak disse que “adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”; Guedes parece parafraseá-lo na ideia de que adiar a morte seria exatamente sempre poder cantar mais um sonho. Seria possível referir-se a Autoexame de corpo de delito como teatro musical, estruturando-se no entremear de narrativas e líricas do onírico – dramaturgia e letras são assinadas por Guedes, costurando sonhos escritos (sonhados?) por ela e também de Walter Benjamin.
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Quando Guedes conta de um sonho de céu estrelado e da aglomeração das estrelas visíveis em constelações, seu olhar mira para as pessoas sentadas nas cadeiras espalhadas pelo espaço cênico, também em pequenas aglomerações. Depois ela fala de seu desaparecimento e ainda estamos todos lá. Krenak também diz que cada pessoa é uma constelação.
Nas paredes, vídeos de Bianca Turner multiplicam radiografias de corpos projetados do dentro fora ao dentro ao mais; células órgãos mares coisas-outras. Os figurinos de Claudia Schapira e seus diversos usos, configurações e amarrações por Guedes são camadas de tecido e camadas do inconsciente, desvelando-se sonho a sonho.
Em O desejo dos outros, Hanna Limulja escreve, falando a partir de Davi Kopenawa, que “quem sonha apenas consigo nunca sai de si; e, nesse caso, o mundo se torna pequeno demais”. No que se escuta, falado e cantado, Guedes em alguma medida sonha consigo mas também se abre para imensidões. Uma solidão do sonho também se instaura. Quando este Autoexame de corpo de delito se propõe a narrar sonhos, isso torna-se um dispositivo para sonhar juntes?
Encarar a morte, fugir, pedir mais, envelhecer. Querer viver é também ter a capacidade de imaginar futuros, algo que vem se mostrando difícil na sociedade contemporânea. Também o teatro tem se mostrado muitas vezes fatalista ou cínico em suas lidas (auto)críticas sobre o estado atual das coisas. Há algo de ingênuo que talvez se veja lançado no voltar o olhar para o sonhado, especialmente diante da dureza da realidade – o que não significa que a violência do mundo também não habite o sono enquanto pesadelo.
Ciente dessa possível acusação de demasiada inocência, Autoexame de corpo de delito assume-se em seu sonho de país enquanto possibilidade do delírio. Uma tentativa de construir um sonhar radical. Enquanto o desejo por uma transformação social aparece no horizonte, o convite ao sonho aqui parece ser o de transformar o próprio horizonte; alargá-lo em nossas imaginações, inconscientes, subjetividades. No lusco-fusco dos tempos, não se apegar à nitidez, mas entregar-se ao embaçamento.
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ficha técnica
AUTOEXAME DE CORPO DE DELITO
Dramaturgia e atuação: Lucienne Guedes
Encenação e espaço cênico: Eliana Monteiro
Piano, composição musical e arranjos: Daniel Maudonnet
Letras das músicas: Lucienne Guedes
Iluminação: Aline Santini
Video: Bianca Turner
Direção de movimento: Irupé Sarmiento
Figurino: Claudia Schapira
Assistência de iluminação e operação de luz: Gabriela Ciancio
Operação de luz: Felipe Mendes
Engenharia de som: Filipe Magalhães
Design: Renan Marcondes
Fotografia: Mayra Azzi
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Redes sociais: Jorge Ferreira
Estagiária no processo de criação: Bárbara Freitas
Assistência de produção: Renata Allucci e Sofia Marucci
Direção de produção: Leonardo Birche