teatro

de uma impraticável ingenuidade dos princípios

crítica de “As Mãos Sujas”, de Jean-Paul Sartre, com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo.

Depois da temporada de estreia no Sesc Ipiranga em novembro de 2019, As Mãos Sujas retorna aos palcos. O texto de Jean-Paul Sartre com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo está em cartaz na Sala Jardel Filho, no Centro Cultural São Paulo.

O ator que dá nome ao teatro protagonizou Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha. O filme é referenciado no espetáculo de Peixoto desde a escolha da tipografia presente no rico programa da peça (disponível na temporada no Sesc) e pontualmente nas projeções. Mais do que isso: no dispositivo cênico proposto pelo diretor, Yghor Boy, de câmera em punho, muitas vezes propõe enquadramentos que remetem aos de Rocha.

Para além de citações formais, a temática de Terra em Transe encontra paralelos possíveis com As Mãos Sujas. Ambas as narrativas versam sobre o jogo político em suas pátrias (nem-tão) fictícias a partir da visão de um sujeito inserido nele.

A comparação pode soar descabida, visto que a dramaturgia de Sartre foca em uma situação enquanto o filme de Rocha é vertiginoso em seus tantos acontecimentos. Mas é importante resgatar o caráter oscilante entre lucidez e delírio do olhar subjetivo de Paulo Martins para lembrar da afirmação de Hugo, protagonista de As Mãos Sujas, feita a sua companheira Olga sobre a precisão e a verossimilhança do relato que comporia a seguir — uma história que “de perto, não se sustenta”.

As duas obras encerram-se retornando ao momento inicial. Se o destino dos protagonistas é o mesmo, as motivações e escolhas que os levam à tal fim são bem diversas. Há outras semelhanças entre as figuras — o berço da intelectualidade, os pensamentos revolucionários — mas suas capacidades de ação mostram-se bem distintas.

foto: Padu Palmerio

Sartre afirma ter encontrado o tema de As Mãos Sujas em uma célebre afirmação de Saint-Just — conhecido como o “anjo da morte” da Revolução Francesa — proclamada durante o processo contra o rei Luis XVI: “On ne peut point régner innocemment” (traduzida, no programa do espetáculo, como “não se pode governar inocentemente”).

Assim, partindo desta ideia, cria seu enredo na fictícia Ilíria nos últimos momentos da Segunda Guerra Mundial. O país estivera alinhado ao nazifascismo e vê no horizonte a chegada do exército soviético em suas terras — o que estimula o Partido Proletário a buscar maneiras de chegar ao poder. O debate centra-se na oposição de duas personagens.

De um lado está o jovem intelectual anarquista Hugo, que “abandona” sua classe burguesa para filiar-se ao Partido Proletário, onde assina o (pouco útil) jornal e anseia por uma oportunidade de realizar ações diretas. Do outro, o maduro líder Hoederer, cuja decisão de buscar uma conciliação com representantes de outros alinhamentos políticos a fim de negociar o poder dividiu setores do Partido.

É depois desta definição que Hugo é incumbido de assassinar Hoederer e, para tanto, torna-se seu secretário — ele e sua esposa Jéssica vão morar na casa do líder partidário. A narrativa de As Mãos Sujas começa alguns anos após o acontecimento. O jovem vai à casa de Olga, antiga companheira de militância, após sair da cadeia. É para ela que Hugo relata como o ato se deu.

Antes de chegar ao texto de Sartre, a encenação de Peixoto realiza uma espécie de prólogo: uma versão de El Justiciero, dos Mutantes. Vinicius Meloni, sobre uma mesa, é enquadrado pela câmera de Boy enquanto move-se agitado; quase um Hugo em transe. O trabalho de interpretação de Meloni, que mesmo em meio a um talentoso elenco destaca-se durante toda a obra, impressiona pela precisão e expressividade.

foto: Padu Palmerio

Também durante a transição de cenas este corpo expansivo, inquieto, desesperado, será novamente visto no palco — e também na tela da captação ao vivo de vídeo. O dispositivo da filmagem, somada à esta corporeidade recorrente e outras fissuras nas situações dramáticas, estabelece no espetáculo uma teatralidade que potencializa o texto sartriano.

Convive com a banda ao vivo — composta pelos atores Rodrigo Scarpelli e Thomas Huszar e pelo músico Ivan Garro (que também assina desenho de som e sonoplastia) — a recorrente canção Gasolina, do Teto Preto. São momentos explosivos onde parece aflorar a subjetividade em estado de caos de Hugo durante sua missão.

A densa dramaturgia de As Mãos Sujas, traduzida por Homero Santiago especialmente para essa montagem, encontra uma encenação à altura nas escolhas de Peixoto. A música — com direção de Guilherme Calzavara — acompanha os tempos e atmosferas das situações, além de criar certas leituras possíveis a partir da relação da banda com a cena; por exemplo, quando Scarpelli levanta-se como Hoederer sem parar de tocar seu baixo.

O espetáculo, com uma cenografia enxuta — uma mesa que também faz as vezes de cama, cadeiras e apenas os objetos necessários para cada situação — e iluminação sóbria (de Guilherme Bonfanti), apoia-se fundamentalmente no trabalho de seus atores e na câmera de Boy. No telão móvel, são pontuais os momentos de planos mais amplos; o que se vê com mais frequência são recortes no primeiro e primeiríssimo plano.

foto: Padu Palmerio

No dispositivo proposto por Peixoto, o vídeo — dentre diversas possibilidades de leitura — é onde se dá o comentário com a plateia; a quebra da quarta parede. Ecoam aqui, novamente, referências à Terra em Transe. Em dado momento, Georgina Castro emociona-se contidamente como Olga quando reproduz uma fala de Sara (Glauce Rocha) do filme de 1967.

A inserção textual — e imagética, considerando a semelhança entre os quadros — verticaliza a figura desta militante leal, trazendo também de forma mais direta questões de gênero. Em outra escolha acertada, ainda que talvez um pouco nebulosa à primeira vista, quando Hugo, Hoederer e os dois brutamontes que fazem a segurança da casa (Paulo Balistrieri e Paulo Vinicius, que também interpretam outros personagens) conversam na cama, Jéssica (Gabriela Cerqueira), a esposa do jovem, sai de cena. Cerqueira é acompanhada por Boy para um tipo de camarim.

Enquanto no palco estão os quatro homens — em cena onde uma fragilidade patética de Hugo é escancarada pela figura de Meloni apenas de cuecas — a mulher calmamente se troca e escreve com batom no espelho uma frase que desloca o espectador da ficção sendo construída. Sua seriedade — e serenidade — contrasta com o ridículo da situação acontecendo sobre a cama.

Nas relações construídas entre as personagens de sexo oposto, muitas vezes intensifica-se a compreensão de que As Mãos Sujas é uma obra que versa tanto sobre política quanto sobre seus sujeitos e afetos. Pois durante os densos diálogos, entre provocações e o debate de ideias, simultaneamente se enxergam representações — o novo e o velho; o ingênuo e o astuto; o sonhador e o pragmático, etc. — mas também indivíduos. E especialmente Hugo, na situação, aos poucos começa a colocar-se em xeque; questionar suas visões, antes cristalizadas.

A ambição do intelectual anarquista em se colocar em ação logo revela um dado patético de sua figura — desenha-se o que parece ser uma irremediável distância entre seus princípios e a prática. Seu ímpeto revolucionário vai sendo abalroado pela realpolitik praticada e defendida por Hoederer.

Dramaturgia e encenação parecem escolher por fortalecer o lado deste em detrimento do jovem Hugo. Porém, não se desenha um jogo de simples identificação com a plateia, onde um está certo e o outro errado.

foto: Padu Palmerio

É possível considerar que o olhar do público sobre o conflito oscile e seja distinto de acordo com a trajetória e os pensamentos de cada espectador. Considerando nossa realidade nacional, é impossível não ler o embate dos dois dentro do campo das discussões entre setores da esquerda sobre os anos do lulopetismo. Scarpelli chega a apontar para si mesmo quando Hoederer diz a palavra “ideia”, onde se pode inferir uma referência direta ao discurso do ex-presidente Lula em São Bernardo, antes de sua prisão.

As Mãos Sujas não busca oferecer respostas definitivas para as questões éticas e políticas que apresenta. Estão postos os debates entre a conflituosa relação entre meios e fins; princípios e consequências. Mas enquanto Hugo escuta Hoederer — e também as colocações de Jéssica — parece-se sugerir a compreensão de algo ainda anterior a isso. Trata-se da responsabilidade individual sobre as escolhas que cada um faz na lida com o mundo; da necessária responsabilização sobre as tomadas de decisão que se fazem a partir das circunstâncias que nos envolvem — e o quanto estas se transformam.

Jéssica chega a questionar Hugo acerca de suas convicções políticas — caso conhecesse Hoederer antes de seus outros companheiros de Partido, não estaria o jovem aliado a ele? Nas constantes hesitações do protagonista, desenhadas por Meloni com uma angustiada comicidade, há o desespero de quem se vê em meio a um patético pesadelo ao ter confrontados seus princípios.

Entre intelectualidade, ímpeto e ingenuidade, Hugo acredita estar do lado certo da História ao aceitar sua incumbência, esperançoso de que o Partido Proletário seguirá sua verve revolucionária. Não é essa a motivação que dispara o gatilho; não são esses os rumos da ação partidária. Hugo acaba duplamente traído por suas escolhas, mas nem por isso deixa de tomar sua decisão final — resignado, talvez? Não há herói algum em As Mãos Sujas; o que poderia se pensar serem falhas trágicas nada mais são do que atos humanos. A realidade não é tão inocente quanto nossos princípios.

foto: Padu Palmerio