confrontar o contraditório (ou a caótica e tola revolução de teresa)
crítica de “As Mamas de Tirésias”, de Guillaume Apollinaire com direção de André Capuano.
[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]
Cansada da vida doméstica e de seu desagradável marido, Teresa resolve amarrá-lo, vestir-se com suas roupas e sair às ruas. Ela assume então a identidade do homem Tirésias, que lidera uma verdadeira revolução contra a procriação em Zanzibar. Enquanto isso, seu marido dá a luz à quarenta mil crianças.
É este o enredo de As Mamas de Tirésias, do escritor e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880–1918). A encenação de André Capuano põe em cena três atrizes — Ana Paulla Mota, Gilka Verana e Priscilla Carbone — para contar, de algum modo, essa história (além delas, a discotecagem de Almir Rosa é também personagem).
Apollinaire escreveu a maior parte da peça no ano de 1903; mas é ao voltar da primeira guerra mundial, onde lutou como soldado em 1917 que a finaliza, escrevendo então o Prólogo e a última cena do Segundo Ato. No prólogo, efeitos de quem vivenciou o campo de batalha; metáforas com tiros de canhões que apagam estrelas — e a convocação à reacende-las. Na cena final, uma conciliação um tanto inesperada entre as personagens.
Cabe ressaltar que ele foi o primeiro a utilizar a palavra surrealismo; credita-se a ele a invenção do termo. No prefácio de As Mamas de Tirésias — cujo subtítulo é “drama surrealista em dois atos e um prólogo — o autor faz colocações pertinentes sobre a ideia.
Afirma que “quando o homem quis fazer uma imitação do andar criou a roda, que não se parece com uma perna”, mesmo inconscientemente, “fez assim surrealismo”. E, trazendo essa noção para o campo artístico, diz que “da vida que interpreta o teatro já só tem aquilo que a roda tem de uma perna”.
“E na minha opinião é legítimo por consequência, que sejam levadas ao teatro novas e surpreendentes estéticas capazes de acentuar o caráter cênico das personagens e aumentar a pompa da encenação, sem ser no entanto modificado o patético ou o cômico de situações que a si próprias devem bastar-se.” (Guillaume Apollinaire, no prefácio de As Mamas de Tirésias)
Nessa possibilidade aberta pela compreensão de uma imitação que não busca verossimilhança, mas sim construir relações de ordens diversas com aquilo que observa — no caso do teatro, a própria vida — o que se verifica é a inauguração de um campo onde se permite experienciar a teatralidade de forma ampla.
Assim, mesmo que neste mesmo prefácio Apollinaire insista na seriedade do tema de As Mamas de Tirésias — grosso modo, a necessidade dos franceses terem filhos — sua proposição acerca do surrealismo é um convite para subversões de sua dramaturgia. É o que se verifica na encenação de Capuano, que não se exime de confrontar o texto quase na íntegra ao mesmo tempo em que busca uma estética capaz de presentificá-lo, um século depois.
A primeira música tocada por Rosa é precisamente Zanzibar (As cores), do A Cor do Som. Em uma escolha cênica que conta com a felicidade do acaso — ou do destino — a canção que leva o nome do local onde As Mamas de Tirésias se passa (ainda que seja um arquipélago na Tanzânia — à época da escrita da peça, um sultanato independente — Apollinaire constrói uma Zanzibar fictícia, francesa) dialoga de forma quase direta com a proposta do espetáculo.
Ao ouvir sem muita atenção, verifica-se a harmonia entre os versos cantados e sua melodia. No entanto, ao debruçar-se sobre a construção da letra, torna-se difícil realizar qualquer análise que sustente algum discurso ali presente — ao menos dentro de uma organização lógica e racional.
Talvez em uma chave invertida, há também esse jogo nas escolhas estéticas de Capuano. A forma implode seu conteúdo; em uma espécie de jogo performativo com uma excessiva materialidade cênica, aos poucos a sala inicialmente vazia dá lugar a um caos ora obtuso, ora grotesco.
As Mamas de Tirésias é muitas vezes indigesto, mas encontra em meio à sua iconoclastia e as tantas profanações alguma espécie de beleza. O trabalho das atrizes oscila constantemente entre uma visceralidade performática e convenções da representação, mantendo o público capturado entre compreensão e perplexidade.
Mesmo com diversos momentos que beiram o incognoscível, em muitos outros as escolhas evidenciam também um discurso político. Na utilização de signos facilmente compreensíveis, o que se poderia ler como misoginia é rapidamente ridicularizado. O dado sexista de Teresa precisar tornar-se Tirésias para ter algum poder e legitimidade no espaço público encontra sua crítica organicamente nas ações das atrizes, que satirizam construções estúpidas da masculinidade.
No súbito — e longo — intervalo entre os atos, mais um ato de dessacralização das convenções estabelecidas da relação teatral. Ali, ainda que não haja o desenvolvimento da dramaturgia, o enredo segue em movimento: a discotecagem, o povo de Zanzibar está em festa — tal qual o público, vendo suas cadeiras transformadas em uma espécie de barricada. Seria essa a revolução de Tirésias em curso, entre selfies, cervejas e conversas aleatórias?
Enquanto isso, seu (ex?)Marido dá a luz à mais de quarenta mil crianças. Se por um lado ele narra o sucesso de todas elas nas mais variadas carreiras, por outro a encenação opta por, mais uma vez, trazer um dado indigesto na forma de colocar algumas delas em cena; há algo de macabro, insólito. Dessa forma, confronta-se também a proposta original de Apollinaire — de convocar os franceses a procriar no pós-guerra.
No final, a mensagem de conciliação presente na dramaturgia original parece resultar extremamente contraditória. Como se toda a revolução perpetrada por Teresa/Tirésias fosse em vão e o que se pode fazer é apenas resignar-se e compreender o papel da mulher dentro de casa.
Ainda que não se configure como uma obra abertamente militante — com a presença de alguns comentários mais diretos frente à realidade nacional — é possível apreender uma leitura que vai ao encontro do pensamento da filósofa italiana Silvia Federici.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, ela afirma que “toda a organização da vida em família é um jeito de controlar as mulheres”. O fato de que o trabalho reprodutivo, “que produz uma quantidade enorme de riquezas para os empregadores — pois é o trabalho que reproduz a mão-de-obra”, não ser considerado trabalho é “uma forma de opressão, de exploração, é uma forma de violência contra as mulheres”.
Há, em As Mamas de Tirésias, um grande campo aberto para que o espectador construa seus próprios sentidos daquilo que acontece; entre compreensão, imaginação, forma e conteúdo. Após as mais de duas horas de espetáculo, o excessivo acúmulo de cenografia, figurino, adereços e consumíveis verificado no espaço cênico pode ser lido tanto como a sobreposição dos tantos signos construídos como o abandono de tudo aquilo; como dejetos, despossuídos de qualquer valor.
Ao final, a feijoada servida ao público remete ao vício do marido por toucinhos. Mas, dentro da contemporaneidade — e considerando referências pop de As Mamas de Tirésias como a música Single Ladies, de Beyoncé — também se pode pensar num antigo meme que circulava na internet. Na publicação supostamente feita por um estrangeiro, com frases mal construídas, criticava-se que no Brasil “nada acontece feijoada” (sic). Lidar com o contraditório é assumir o risco de que uma caótica revolução pode ter seu fim em uma tola conciliação.