teatro

as tantas vidas em uma primeira pessoa

crítica de “Arrimo”, do Núcleo Macabéa.

[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Os trabalhos de Rudinei Borges dos Santos são marcados por características peculiares da carpintaria do artista. Em suas dramaturgias, a narratividade caminha lado a lado com a poesia, tecendo delicadas composições que se estruturam com uma espécie de lirismo popular onde a subjetividade do autor torna-se condutora para um olhar que volta-se para fora, para questões sociais, culturais e também políticas.

Medea Mina Jeje, onde o poema cênico de Borges é dirigido por Juliana Monteiro, e Dezuó: breviário das águas, com encenação de Patricia Gifford, são exemplos desta escrita onde “poesia e dramaturgia conversam como velhos pescadores a ver o sol se pôr na beira de um rio que corre”.

No recente Transamazônica, evidencia-se na assinatura de Borges — que assina também a direção da obra — um engajamento com relatos de abandonos e marginalizações, sem nunca perder de vista a beleza possível na lida formal com tal temática. Também entremeia-se a relação da biografia do artista com suas escolhas de enunciados e estéticas.

Em Arrimo, do Núcleo Macabéa, há uma radicalização no que diz respeito à implicação do artista em sua obra. Assinando concepção, dramaturgia e direção geral (além da direção de produção), Borges não apenas volta-se para suas reminiscências de infância, mas coloca-se em primeira pessoa na construção narrativa.

Quem fala sou eu mesmo, o autor deste texto para o teatro. Um escritor amazônida, nascido no norte do Brasil, franzino, 1 metro e 64 centímetros de altura, traços indígenas e negros. Voz anasalada. (da dramaturgia de Arrimo)

Inserindo um dado metateatral logo no início da obra, Borges estabelece no diálogo entre sua voz dramatúrgica e sua encenação um jogo interessante acerca da representação. Pois ainda que esteja falando de si, ele não se coloca na cena, tampouco escolhe apresentar nela a materialidade documental de suas memórias.

Arrimo se utiliza do material documental, biográfico e da memória para construir uma narrativa poético-social. O arrimo de família de Borges, centro de toda a obra, é sua mãe Rosalva. Por meio da reconstrução da memória, entre o olhar infantil — que pode ser dito ingênuo, mas não sem sofrimento — e a elaboração adulta, a encenação se desenvolve nas possibilidades de reflexão permitidas pelo distanciamento do tempo e por análises sociopolíticas.

Edi Cardoso em “Arrimo” / foto: divulgação

O espetáculo corre o risco de resvalar em uma excessiva autoreferenciação em alguns momentos. No entanto, mesmo se isso acontece, está amparado na própria proposta. A voz em primeira pessoa de Borges não quer versar sobre as suas mazelas pessoais mas, por essência, observar suas vivências a partir de seu locus social. As dificuldades enfrentadas por sua mãe se apresentam nessa retomada da própria trajetória e na compreensão de que ela não é exceção, mas sim, quase a regra em nosso país.

Se no dicionário “arrimo” é substantivo masculino, no Brasil é sem dúvida feminino. Não se trata de uma afirmação para romantizar ou naturalizar um comportamento que não deveria estar vinculado a um gênero. Trata-se meramente de atestar o fato de que o abandono parental, em nossa sociedade, está majoritariamente vinculado ao gênero masculino.

A dramaturgia de Borges debruça-se, sim, na miséria e na pobreza que permearam sua infância; pois tais dados são constitutivos em sua vida. Há um elogio à resiliência, mas não descolado de uma crítica ferrenha ao que torna tal qualidade essencial para a sobrevivência. E há a percepção do quanto sua mãe batalhou para que ele fosse educado.

Minha primeira professora foi a minha mãe. Ela enchia um caderno de vogais e consoantes para que eu pudesse contorná-las, aprendendo assim a manusear o lápis. Todavia, nessa época minha mãe sequer havia concluído o ensino básico. (…) Aquela mulher franzina, sem riquezas materiais, sem títulos acadêmicos, aquela senhora anônima, foi ela que me ensinou a ler e a escrever (da dramaturgia de Arrimo)

detalhe do figurino de “Arrimo” / foto: Julieta Bacchin

Nas palavras corporificadas por Edi Cardoso, Geraldo Fernandes e Leandro Lago, está posta uma contundente afirmação do direito à literatura como garantia de existência. Os três atores literalmente vestem a narrativa: nos figurinos de Claudia Melo se vêem costurados trechos do texto. A encenação de Borges compreende a força da delicadeza, com escolhas singelas quanto às composições cênicas.

A presença do músico Juh Vieira na cena — que também assina os arranjos — é fundamental para a construção das atmosferas a partir das sonoridades, além das canções interpretadas por Cardoso, Fernandes e Lago.

Décio Filho assina uma iluminação que dialoga de forma interessante com a instalação cênica de Andreas Guimarães; uma luz recortada pelo vento que agita os panos pendurados.

Na cenografia de Guimarães, signos com diversas leituras possíveis: os panos rendados, todos brancos, parecem remeter ao ofício da limpeza da mãe de Borges, como que secando em varais. Nos bancos, a metáfora do arrimo é elemento concreto. Na madeira que assenta o palco, setas apontando para o centro.

Considerando a primeira pessoa do texto, é impossível não pensar sobre a trajetória de Borges a partir da força de seu Arrimo. Como se os caminhos apontassem o centro do palco na compreensão da arte como destino; como pouso de sua mandala. Pouso de sua poesia, que pode nascer até mesmo de sementes secas.

Edi Cardoso, Leandro Lago e Geraldo Fernandes em “Arrimo” / foto: divulgação/Daniel Lobo