cinismo sublime
crítica a partir de AQUI1.000.000.000.000, de Elisa Ohtake. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Depois de um vídeo gravado nos camarins do Sesc 24 de Maio, onde quase todas as pessoas do elenco de AQUI elevado a um trilhão (2024, estilizado AQUI1.000.000.000.000) aparecem largadas pelos cantos, comendo porcarias e se lambuzando de refrigerante, parte delas entram no palco e anunciam o que farão: a montagem de AQUI1.000.000.000.000, que levará cerca de uma hora e meia. Então, haverá um intervalo e, na volta, o espetáculo AQUI1.000.000.000.000, com duração de quinze minutos. Sucedem-se então monólogos onde cada pessoa que entra no palco espalha lixo por ele e conta de onde estava até chegar AQUI.
Na última década, os trabalhos de Elisa Ohtake têm transitado entre as artes vivas na direção de sua busca por uma vitalidade radical. Em 2014, uma obra teatral e uma de dança lançavam mão de dispositivos aparentemente performativos que construíam seus enquadramentos ficcionais em diferentes graus. Se em Tira meu fôlego a relação entre a provocação às dançarinas e dançarinos de “dançarem suas emoções” e as coreografias e relatos vistos em cena eram críveis, em Let’s just kiss and say goodbye e sua premissa da despedida daquele elenco dos palcos era perceptivelmente um golpe de teatro.
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Em entrevista presente no site da artista, falando sobre os dois espetáculos supracitados, ela diz: “gosto desse dispositivo tão simples porém infinito de misturar realidade e ficção. Nos meus trabalhos gosto também de dizer que a ficção é realidade e a realidade, ficção“. Entre 2016 e 2018, Ohtake encenou dois olhares sobre Hamlet, sendo o primeiro no contexto escolar (com uma turma do Teatro-escola Célia Helena, onde lecionava). HAMLETMETAL jogava entre teatralidade e performatividade dentro deste dispositivo infinito: angústias adolescentes levadas ao extremo, entre sofrimento e brincadeiras autorreferentes em torno do material shakespeariano, e um pixo na parede afirmando que “a humanidade é um projeto que ainda não deu certo“.
Já em Peça para Adultos Feita por Crianças, “a radicalidade de Ohtake se encontra com a seriedade da brincadeira“, e “a partir da invenção de palavras ou na lida com conceitos existentes, as crianças recusam o antropocentrismo e a ‘chatice’ de ser adulto“, almejando “uma existência mais divertida, coletiva; uma transumanidade, integrada ao ambiente que nos cerca” (trechos da crítica deste autor para a Folha de S. Paulo, publicada em 18/11/2018).
Quando Ohtake dirigiu HAMLETMETAL, escrevi para a turma em formação, da qual fui professor; no texto, nunca publicado, afirmei que “a assinatura de Elisa não é uma rubrica no canto de uma tela enorme – a assinatura é a própria tela em branco, pronta para ser rabiscada, jorrada, viscerada, explodida“. Se nestes trabalhos citados havia alguma dúvida em torno da dimensão da autoria da artista na totalidade da obra, em AQUI elevado a um trilhão a concepção, texto e direção assinadas por ela, somada não só à escolha de seu elenco mas também à escritura específica de cada cena para cada artista, faz da encenação uma complexa viagem por doze lugares (e não-lugares) em doze vozes, doze reflexões de Ohtake.
A pesquisa da vitalidade radical choca-se frontalmente com o investimento na teatralidade: AQUI elevado a um trilhão é no todo o que talvez se possa ler como teatrão, oscilando entre a performatividade associada ao risco (e até ao ridículo) da cena e um lance quase antiperformativo, criando momentos de autorreferência ficcionais a partir da personalidade de cada artista; quase como piadas internas tornadas públicas. Além disso, há uma espécie de canastrice densamente trabalhada nas técnicas de interpretação e partituras vocais e corporais de cada intérprete. A intenção cínica já se faz ver nessa intenção de subverter a pretensa performatividade da obra.
Os antes descritos por atrizes e atores podem até partir de espaços reais visitados por Ohtake (as projeções de fotos no momento do “intervalo” dão a ver pistas do que se viu até então), mas há sempre um ruído, um grau de absurdo, algo de inacreditável, desde a forma pela qual Maria Manoella descreve seu amor pela mata até a criação de Aretha Sadick no metaverso. A brincadeira de acreditar se dá no pacto construído desde o início de AQUI elevado a um trilhão, e essas montanhas (de pedra, de lixo, de imaginação) a serem escaladas é também a provocação do título que permeia toda a obra: intensificar o brilho, a pulsão de vida; mergulhar radicalmente na ficção para, como que pelo avesso, extrair dela o que pode haver de mais vital.
AQUI elevado a um trilhão faz de sua própria cena um não-lugar que pode ser todos os lugares, da grande mancha de lixo do pacífico ao terreno baldio da vizinhança; é como se o palco fosse pouso de um nada que se faz acontecer; nada AQUI, nada antes, não há de onde se veio, foi sempre ali esse AQUI, não há como jogar nada “fora” porque não há “fora” do nosso planeta ou algo do tipo. A integração proposta por Donna Haraway, citada no programa e na obra, é AQUI quase a manifestação da impossibilidade desse humano; quando Georgette Fadel fala em “viver com o problema” lá está novamente o cinismo, já que o problema que a circunda foi precisamente construído pela própria obra.
Evidente que trata-se de representação, e não há como não estar AQUI às voltas com o problema e talvez estar com o problema não signifique necessariamente abrir mão de não estar. AQUI elevado a um trilhão não é exatamente resolutivo, mas reação, inquietação, compartilhamento; o espetáculo de Ohtake é em si excesso de informações, propostas, dados, gags, reflexões, desperdício. Acúmulo, esvaziamento, dispersão, entre repetições e gestos únicos – uma corda chama atenção por ser o único item desde o início pendurado no cenário assinado por Ohtake e está lá para Michel Joelsas utilizar em apenas um momento.
Nessa teatralidade do elevado a um trilhão, a própria função do teatro faz-se subtexto: como pode tudo, não serve para nada. Como levar à cena a crise climática? Como falar do fim deste mundo? Como imaginar outros? “Não há nada de novo sob o sol, mas há novos sois“, escreveu Octavia Butler, mas onde a climate fiction (cli-fi) se esbarra com a realidade e se torna mais vívida que o sci-fi? Os novos sois e seus brilhos quase-inimagináveis – tornados tangíveis em AQUI – estão distantes demais e o que se pode ter é mesmo a ficção posta em movimento no palco.
Ainda, sobre Haraway, o único momento onde a integração surge como possibilidade é no metaverso de Sadick; a integração entre humanidades e natureza – indistinguíveis para muitas culturas – se revela na criação virtual de um avatar que é ela, atriz, vulcão, lava, matéria, luz… E quando o Real parece querer invadir AQUI, Alison Guega dá um relato breve sobre sua experiência verídica e imediatamente chafurda “no problema” e então, elevado a um trilhão, pode brincar na ficção em meio ao tanto que lança para o alto e deixa cair no palco. Na constituição do elenco de AQUI, Ohtake materializa as “parcerias inusitadas” propostas por Haraway e evocadas por Fadel – especialmente ao incluir Mario Bortolotto e fazer de sua cena um momento quase descolado do que se viu antes e se virá depois, uma desconstrução cômica da persona conhecida na cena paulistana em um jogo estranho entre humor e embaraço.
AQUI1.000.000.000.000 em sua insistente excessividade faz da fruição trânsito entre constrangimento e gozo, melancolia e euforia, tédio e excitação, espanto e admiração: aí está o cinismo sublime de Elisa Ohtake. Há algo visivelmente preciso em meio àquele caos disforme que vai se acumulando monólogo após monólogo que se faz presente em uma frase, em um gesto inesperado. Nas descrições de imagem, descrições de anti-imagens; espaços liminares, o absurdo da realidade e uma viagem por lugares que nunca existiram e sempre existirão, por antes que só se fazem no agora. No final, resta o desejo para que todes estejamos AQUI, elevados a um trilhão, contemplando e habitando profundamente o problema onde vivemos.
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serviço
AQUI1.000.000.000.000
com direção de Elisa Ohtake
Datas: 13/6 a 14/7 de 2024
Quinta a sábado, às 20h; domingos e feriados, às 18h.
Local: Sesc 24 de Maio, rua 24 de Maio, 109, São Paulo – 350 metros da estação República do metrô.
Classificação: 14 anos
Ingressos: R$50 (inteira), R$25 (meia) e R$15 (Credencial Plena Sesc).
Duração do espetáculo: 120 min
ficha técnica
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concepção, texto e direção: Elisa Ohtake
atores: Aretha Sadick, Georgette Fadel, Rodrigo Pandolfo, Mario Bortolotto, Maria Manoella, Paula Picarelli, Vinicius Meloni, Alison Guega, Tamara Stief, Michel Joelsas, Roberto Alencar, Ricardo Oliveira
iluminação: Guilherme Bonfanti
figurino: Juliano Lopes
cenografia: Elisa Ohtake
lixo espacial e catapulta: Cesar Rezende Santana
construção do cenário: Cesar Rezende Santana
assistente de iluminação e operador de luz: Franscico Turbiani
sonoplastia: Elisa Ohtake
solo de guitarra: Lucio Maia
engenheiro de som: Tomé de Souza
operação de som: Eduardo Alves
microfonista: Felipe Moraes
riggers: Wellington Silva e Dennis Inoue
A.R.T: Kenia da Cruz Moreira
colaboração artística: Hugo Villavicenzio
preparação vocal: Sonia Goussinsky
fonoaudióloga: Claudia Pacheco
contra-regras: Fernando Lemos, Caio César Teixeira e Ademir Junior
arte gráfica: Jorge Alves
assessoria de imprensa: Adriana Monteiro/Ofício das Letras
fotos: João Caldas
assessoria jurídica: Martha Macruz
assistente de produção: Jorge Alves
direção de produção: Stella Marini/Púrpura Produções Artísticas