teatro

corpo nu ao chão (não há heróis nas tragédias do cotidiano)

crítica de “A Repetição: História(s) do Teatro I”, de Milo Rau, apresentada na MITsp 2019.

foto: Christophe Raynaud de Lage

[english version available here: naked body on the floor]

Noite de quatorze de março de 2019. Um ano antes, a brutal execução de Marielle Franco, que também tirou a vida de seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Um dia antes, o massacre na escola estadual Raul Brasil, em Suzano. Além de assassinatos violentos com armas de fogo, o Brasil este ano também viu o crime ambiental de Brumadinho e o incêndio no Ninho do Urubu.

É difícil passar um dia inteiro sem uma notícia ruim. Tragédias se sucedem cotidianamente; e nós, em meio ao turbilhão, tantas vezes nos sentimos impotentes, esgotados. Cada vez mais nos assombramos não apenas com as ações testemunhadas mas com as intenções e motivações por trás delas. E não se trata de algo exclusivo de nosso país.

Aproximadamente na mesma hora em que “A Repetição: História(s) do Teatro I”, do suíço Milo Rau, começava sua apresentação no Auditório Ibirapuera, um ataque à duas mesquitas na Nova Zelândia, com quarenta e nove vítimas. O atirador, além de um extenso manifesto publicado, transmitiu tudo ao vivo para redes sociais.

Dentro desse contexto atual de tamanha violência, o que ressalta-se em muitos dos casos são, de uma forma ou de outra, o completo e absoluto descaso pela vida humana. A ausência total de um olhar que reconhece um ser humano enquanto tal, tendo o direito à vida como bem mais precioso.

Em “A Repetição”, Rau e seu coletivo, o International Institute of Political Murder (IIPM — Instituto Internacional de Assassinato Político, em tradução livre) partem de um caso da violência dos nossos tempos para tensionar os limites e as possibilidades da representação no ato teatral em fricção com dados da realidade. Para tanto, utiliza atores e não-atores na reconstrução, sob diversas óticas, do assassinato de Ihsane Jarfi.

No ano de 2012, na cidade de Liège, Bélgica, o jovem homossexual belga de origem marroquina foi visto pela última vez entrando em um carro com quatro homens ao sair de uma festa. Depois disso, foi torturado e morto por eles. Seu corpo foi encontrado dez dias depois — e com marcas de ter sofrido uma morte violenta. Em 2014, três dos assassinos foram condenados à prisão perpétua por homicídio doloso com motivações homofóbicas — o quarto ocupante do carro recebeu uma pena de 30 anos.

A Repetição
“A Repetição: História(s) do Teatro I” / foto: Christophe Raynaud de Lage

Para contar essa história, a encenação de Rau lança mão de uma série de recursos. A narrativa do caso em si divide-se em cinco atos — tal escolha pode propor um diálogo com a forma tragédia, jogando com a chamada origem do teatro ocidental enquanto questiona seus limites; no poema de Wislawa Szymborska recitado, tal intenção parece explicitada. No entanto, antes disso, em cena está o teste de elenco para a montagem do trabalho.

No início, um ator (Sabri Saad el Hamus) introduz uma possibilidade do que seria o teatro para ele. A representação, a lida concreta com a personagem. Suas proposições, assim como diversas imagens que serão propostas nesse prólogo, são como iscas lançadas ao desenvolvimento do espetáculo — elementos que se manterão em suspensão até serem referenciados ou ressignificados. Logo no momento das entrevistas, Suzy Cocco, Fabian Leenders e Tom Adjibi parecem reverberar um comentário de el Hamus, que havia criticado o que seriam atores “interpretando atores” ao “entrar” no papel no camarim.

Ali, o que está proposto é que Cocco, Leenders e Adjibi representem a própria audição para entrar no elenco da montagem. Também, neste momento, a introdução de uma câmera, permitindo ao público ver em detalhes a expressividade de cada um, começa a criar clivagens na leitura das camadas de representação. Além disso, a brincadeira metateatral começa a por em xeque habituais formas de se olhar para nossa relação com o teatro.

Há, na fala de cada um deles, de maneira explícita ou sutil, duras críticas às normas sociais e ao fato de tais normatizações se aplicarem ao fazer teatral. Como se a diversidade, ao invés de potencializar a criação, cerceasse as possibilidades de cada um a um nicho, conformado e dentro das expectativas.

A seguir, os cinco atos da tragédia de Jarfi se desenham, cada um sob um aspecto diferente do acontecido. Na “solidão dos vivos”, uma das mais belas composições imagéticas da obra sobrepõe e fricciona tempos, espaços e mídias. A cama vazia, o vídeo e os atores no palco; em três possíveis, os pais frente ao não-retorno de um filho. Cocco, com uma interpretação tão comovente como sutil, parece presentificar a dor daquela mãe.

A Repetição (The Repetition)
“A Repetição: História(s) do Teatro I” / foto: Christophe Raynaud de Lage

Em “A dor dos outros”, o julgamento colocado em questão evidencia, por um lado, o elemento processual performativo na proposta de Sébastien Foucault de acompanhar presencialmente as audiências — em oposição à teatralidade íntima presente na sua narração e nas representações. Por outro, voltando ao diálogo com a tragédia, o absurdo do que se discute: acerca do que haveria sido dito por Jarfi, o que parece estar em debate é se houve ou não hybris — um possível excesso de sua parte.

Excesso algum justifica um espancamento que durou, segundo a análise do legista, entre quatro e seis horas. Ainda assim, era parte do caso. Aqui, a bonita e singela história narrada no prólogo, onde um jovem afirmava gostar de conversar com os mortos ainda que eles não respondessem, pois ao menos eles ouviam, faz pensar se não seria melhor se eles não ouvissem. Também neste segundo ato se propõe a reflexão acerca do uso das imagens do cadáver de Jarfi — e da lida de seus familiares com isso.

Na “banalidade do mal”, Leenders relata seus encontros com um dos assassinos, Jeremy Wintgens. Ao transitar entre a narração e a representação de Wintgens, o conceito de Hannah Arendt que dá nome ao capítulo parece assombrá-lo na percepção de que o intérprete poderia, na vida real, ser o interpretado.

Toda a trajetória da encenação parece apresentar e desenvolver procedimentos que atingirão, de certa forma, seu ápice, no quarto ato — “A anatomia do crime”. A problemática da representação do real traumático, irrepresentável — neste caso, os acontecimentos que levaram Jarfi à morte — é enfrentada por meio de uma assunção quase hiper-realista da ilusão. Rau escolhe não utilizar um recurso visto na montagem — da ação simultânea no palco em diálogo com o vídeo gravado. A cena faz uso poderoso da câmera, mas é o fato de estar acontecendo no palco que a torna ainda mais potente. É menos representação e mais reenactment.

Ao decidir colocar os acontecimentos em cena da maneira mais concreta possível dentro dos limites da representação — e tensionando as convenções teatrais — “A Repetição” se torna uma obra extremamente agressiva. Se antes já havia a violência narrativa e simbólica, aqui ela salta aos olhos do espectador. O carro, a chuva, o corpo nu estendido no chão: resta apenas consternação e dor. Rau e seu coletivo não querem propor respostas mais profundas; trata-se apenas de explicitar a banalidade do ato. E o completo desamparo de Jarfi.

The Repetition (A Repetição)
“A Repetição: História(s) do Teatro I” / foto: Christophe Raynaud de Lage

O último ato — “O coelho” — traz Sara De Bosschere como o ex-namorado de Jarfi que, de algum modo, busca em sinais formas de seguir vivendo. E a forma com a qual “A Repetição” se encaminha para seu final parece propor um certo choque entre arte e vida — ou, entre a representação e o real. No poema de Szymborska, quase uma ode às cortinas quando se fecham. A beleza do fazer teatral mesmo na lida com o que há de mais trágico no mundo.

E é apenas na última cena que se efetiva o discurso da obra como um todo. Se configura a possibilidade, tão antiga, de transformação que o teatro tem. O real, quando lembrado, é indubitavelmente fixo; fatos e seus materiais documentais já estão dados. Ao permitir que Adjibi nos surpreenda e não seja apenas alguém que se parece muito com Jarfi e por isso está em cena, a encenação de Milo Rau parece acreditar no potencial que há no teatro de criar constantemente fissuras para nos movimentar.

A norma é transcendida. As vítimas de tragédias cotidianas não são heróis punidos por enfrentá-la. Por meio da memória, o teatro permite olhar em perspectiva para nossas histórias, quem somos e o que fazemos delas. E, inevitavelmente, se a plateia do mundo não agir, o ator morre.

The Repetition
“A Repetição: História(s) do Teatro I” / foto: Christophe Raynaud de Lage