performance, teatro

fixar palavra em poesia: pintar quadro de amor-perfeito

crítica de “A Palavra Mais Bonita”, de Maria Giulia Pinheiro.

Maria Giulia Pinheiro perdeu seu pai, Hemelson Pinheiro, há cerca de um ano. Diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica Bulbar, seu corpo foi aos poucos definhando. Desse modo, é como se a morte já estivesse se avizinhando. Antes dela chegar, chegou o silêncio: Hemelson perdeu a capacidade de falar. E Maria Giulia é poeta. Logo no início de seu show lírico “A Palavra Mais Bonita”, ela afirma que ama com palavras. Em outro momento, a transparência projetada compartilha com o público uma dedicatória escrita por ela para seu pai.

A palavra mais bonita
Maria Giulia Pinheiro e a dedicatória em “A Palavra Mais Bonita” / foto: Mylena Sousa

O que se faz sem palavras, se até mesmo “silêncio” é uma palavra bonita? Esta reflexão poderia se chamar verba volant, scripta manent. Mas os significados jocosos que a expressão latina ganhou após a carta escrita por Michel Temer para Dilma Rousseff são boa amostra do que está sendo feito da linguagem em nossos tempos.

Onde tudo é registrado, talvez poucas palavras de fato voem. Por outro lado, na velocidade dos acontecimentos é de se pensar quantas permanecem. E quais devem permanecer. No primeiro parágrafo deste texto, muitas palavras que não são bonitas apareceram. Perda, morte, definhar, um nome complicado de doença. Na performance de Pinheiro, elas também aparecem.

A ideia de show lírico parece adequada para o formato de “A Palavra Mais Bonita”. Porém, há um forte dado performativo que permeia toda a obra. Numa dupla operação, Pinheiro traz simultaneamente sua biografia e a construção do jogo que estrutura a criação poética para o centro. Trata-se, então, de uma elaboração que compreende a processualidade como construção cênica. Até que esta alcança a obra em si, quando a performer senta para escrever um poema diante do público — e com ele.

Com momentos pontuais de interação, Pinheiro resgata dos espectadores as suas palavras mais bonitas. De modo semelhante, ela havia feito isso no Facebook, ao convidar pessoas a registrarem as suas palavras de preferência. Os poemas declamados por ela são os resultantes deste processo; o escrito em cena também segue esta proposta.

poema de uma apresentação
registro de Maria Giulia Pinheiro do poema escrito em “A Palavra Mais Bonita”

No palco, três elementos chamam a atenção — além dos muitos papeis espalhados pelo chão. No proscênio, dois microfones; mais ao fundo, no centro, um retroprojetor — que exibe, em transparências, palavras e registros. Em um microfone, Pinheiro compartilha sua história, seus pensamentos e até o processo da obra. No outro, apenas poesias reverberam. Na iluminação de Luisa Dalgalarrondo, o microfone poético ganha cores mais quentes; talvez, mais teatrais.

O formato de “A Palavra Mais Linda” é relativamente simples — e efetivo. Pinheiro está falando de sua própria biografia, mas como intérprete hábil na organização das palavras e seus ritmos conduz o público da maneira que deseja — ainda que certos momentos a tomem de emoção. Barbara Santos colabora com Pinheiro na direção. Juntas, desenham silêncios, risos, identificação e desabafos construídos junto à plateia.

Na tocante narrativa familiar, Pinheiro costura das memórias os momentos cujos afetos muitas vezes podem ser traduzidos em palavras. Códigos entendidos apenas por parentes ganham contornos poéticos ao serem revisitados — e histórias de outras palavras secretas também fazem pensar sobre a potência do que escolher dizer ou calar.

Em cada palavra cabe o mundo; em nós habitam infinitas palavras (e sobrepõem-se tempos, como propõe a poeta) e tantas voam entre nuvens no céu. Pensamos em palavras, nelas imbuímos amor, ódio e esperanças. E ao fixá-las em poesia, eternizamos na arte aquilo que se sente. Assim como pintar um quadro de amor-perfeito não é trazer para casa um vaso de flor, o ato simbólico pode ser tão belo quanto — e menos efêmero.

Diferente de um quadro, no entanto, uma obra presencial — como um show lírico ou uma performance — talvez traga consigo enquanto potência exatamente a efemeridade, que é compartilhada pela vida em si. Talvez esteja na presença a melhor forma de confrontar ausências. No final de “A Palavra Mais Bonita”, Pinheiro parece propor que o corpo é sempre a casa da poesia — seja a palavra pensada, escrita, falada ou não-dita. E é com ele que não esquecemos.

Liberdade
Maria Giulia Pinheiro em “A Palavra Mais Bonita” / foto: Mylena Sousa